A sentença é irrevogável: St. Vincent fez o que quis do público, e fez-se Justice na noite de ontem.
Logo à entrada, era fácil perceber que a enchente do primeiro dia já não se verificaria. Respirava-se melhor, portanto. As passadas podiam ser mais largas e os encontrões humanos completamente evitáveis. O cartaz do dia 2 do NOS Alive 2025 era também bastante diferente do dia anterior, sobretudo por nos parecer ser menos focado numa determinada faixa etária / tendência musical, sendo por isso mais ampla a escolha de estilos em palco. De novo, como ontem se referiu, os dados estavam lançados, mas desta vez a mão do jogador poderia mais facilmente escolher os parceiros, se é que nos fazemos entender.
Girl in Red começou com atraso. Algum público vestia hoodies com o seu nome, envergando um ar de que a animação seria garantida. A presença em palco é animada, de facto, e Marie Ulven é claramente a força motriz dessa mesma animação. Incansável, fez quilómetros em palco. Girl in Red é um projeto recente, por quem os spotifys da vida ajudaram, e de que maneira, a lançar para o mundo esta norueguesa, assim como os seus parceiros de palco. Indie pop, indie rock, dream pop, bedroom pop (sim, essa tag também existe), são esses os rótulos que melhor se colam à pele do som da Girl in Red. Ao introduzir a canção “Girls”, Ulven afirmou que “Now I’m in Lisbon, a word so close to lesbian”, o que gerou imediatamente algumas manifestações de libertação e regozijo. Não há passo atrás nesse caminho. A liberdade é um arco-íris que se foi conquistando, e já não há um pote de ouro no fim dessas cores, quando aparecem no céu. Tudo se vive no presente e não no futuro, e ainda bem. Viver e deixar viver. Aceitar é um verbo melhor que recusar. Por isso, aceitamos Girl In Red e a sua música, embora não seja a nossa praia, sem qualquer ponta de transtorno. Que façam do seu caminho uma estrada onde caibam os que o querem trilhar também.

Duas guitarras, baixo e bateria. São estes os ingredientes que fazem dos The Backseat Lovers uma banda de rock alternativo com alguns pergaminhos. Há por ali qualquer coisa de melodicamente antigo (aquele slide guitar – ou pedal com esse efeito – ajuda à coisa) que não soa nada mal. Não farão a América great again, felizmente, que para isso já há quem nos incomode, o que não acontece com os The Backseat Lovers. Fizeram bem a transição para a noite que se avizinhava. Muito equilibrado, certinho, simpático, perfeito para cerveja e barbecue. Tínhamos o líquido, mas o resto não. Obviamente. Foi a primeira vez da banda em Portugal. Devem ter gostado. O Palco Heineken estava bem composto e bem disposto.
Claro que fomos lamber o gelado sonoro da Capicua, que promete ser bom até ao fim do mundo. Aquele sabor requebrado, de métricas certas como ingrediente linguístico fundamental, ouve-se bem. É cantar como quem diz e dizer como quem respira. “Que se foda a finitude / Desde que haja dados ilimitados”. Quem a conhece bem, não estranha. É a mesma Capicua de “Vayorken”, atualizada nas ideias e antenada com as coisas . Os versos que canta não escondem o medo destes tempos, e por isso são uma crónica das dores das gentes, aquelas que, como cantava Chico Buarque, “não vem nos jornais”. Com Capicua, essas dores não são inscritas a tinta, nem pagináveis. Não sujam as mãos, mas são pimenta na língua de quem as canta. É “a língua estranha das gaivotas”, “Souvenir” plástico deste tempo feito arte. Capicua está zangada. Percebemos. Ela é cronista, não nos esqueçamos. Capicua sublinha o fel irónico do que acontece, por isso está zangada e faz cara de má, por detrás de um sorriso doce e derretido, como um gelado que demora a comer. Capicua boldifica o que gira à nossa volta e por isso a máscara artística tem dificuldade em sorrir. Goste-se mais ou goste-se menos, uma coisa é certa: o que faz, faz bem feito e “a gente diverte-se imenso”.

Pouco depois, os homens das máquinas, dos botões, das eletrónicas aos pés da cruz dos Justice! Pompa e grandiosidade dos senhores de negro (The Gospel According To The Meninblack, sem perseguições ou extraterrestres que vieram para os levar), que apenas querem fazer girar o mundo ao ritmo da sua dança. E gira, e gira e os beats vão penetrando, ganhando espaço, perfurando a pele sem pedidos de licença ou qualquer consideração. Impõem-se e não há nada a fazer. Frios e autoritários. Se ouviram muito Kraftwerk? Claro que sim. Que são robots mais humanizados? É um facto. Se fazer dançar é um atributo, os Justice não são apenas discípulos. Também são mestres, à sua maneira. Bela aula, a de ontem, em tempo de férias escolares. Muito intensos, como sempre são. Amanhã, talvez os nossos órgãos encontrem, de novo, os seus poisos originais.
Era a hora da deusa da noite. Novo álbum, novo espetáculo. Por comparação com o anterior, St. Vincent preparou-nos um cocktail denso, sombrio, caótico e perfeito. Todos de negro em palco. Annie Clark encarna sempre uma persona quando se apresenta nos seus concertos, persona que vai mudando consoante os novos discos e as novas apresentações ao vivo. Desta vez, a nossa Lolita nabokoviana não perdeu esse jeito ingénuo e sabichão. Permanece, aliás, de forma óbvia, mas adicionou-lhe uma camada de loucura irrequieta que faz lembrar Bella Baxter, de Poor Things. Até as semelhanças físicas com Emma Stone parecem inegáveis. A luz de palco, entre claros e escuros, pontuada por vermelhos sanguíneos que ajudam a passar a ideia de caráter erótico que todo o espetáculo transporta e encerra, é perfeita para a tour de All Born Screaming, disco lançado no ano passado. Muitos dos temas não são fáceis de digerir, mas essa é uma marca há muito registada por St. Vincent. As valsas loucas com o outro guitarrista em palco (Annie Clark também toca esse instrumento) parecem ser espontâneas e encenadas ao mesmo tempo, os corpos colados em fúria, assim como os ataques de repulsa que pulsam durante todo o concerto, dão-lhe um ar teatral de grande intensidade. “Broken Man”, “Flea” ou “Big Time Nothing” assentam perfeitamente nesse estranho e belo roteiro de All Born Screaming. Nos temas mais recentes há qualquer coisa que lembra a divina Kate Bush, o que nos parece bastante bem. Quando desceu do palco até ao público, Annie Clark fez de tudo. Cumprimentou, beijou, fez poses eróticas, subiu às cavalitas de um intrépido segurança, fez crowd surfing (as mãos que vos escrevem sabem bem disso), deixou uma das suas guitarras nas mãos de um sortido rapaz para que pudesse tocar à sua vontade durante alguns instantes, sempre determinada a dar o melhor de si. Parece inesgotável, St. Vincent. Que fonte poderosa de energia tem esta senhora! “New York”, como é evidente, não podia faltar, embora numa versão menos colada à original, terminando a sua apresentação com “All Born Screaming”. Renascemos todos um pouco, naquele momento, entoando os versos finais dessa canção em tom de murmúrio. Terminámos a noite no Olimpo sonoro muito particular de St. Vincent. Que luxo luxurioso, aquilo a que assistimos!
Fotografias: Inês Silva














