No passado Domingo, Nils Frahm veio até Lisboa para dar uma aula de Música: como a fazer, como a tocar, como a ouvir, como a compartilhar.
Às 22h em ponto, como verdadeiro alemão, Nils Frahm entrou em palco. As palmas davam expressão à antecipação da plateia, ansiosa por ver e ouvir o autor de All Melody (2018) e Spaces (2013), entre outras maravilhas. O primeiro instrumento a ser escolhido, perdido num mar de teclados, foi o kinderklavier (ou piano de brincar), que lentamente nos trouxe “The Whole Universe Wants To Be Touched”, faixa de abertura de All Melody, as vozes humanas evocadas em pequenos e metálicos tilintares.
Depois de uma calma introdução, a batida e o sintetizador em staccato de “Sunson” iniciaram uma viagem de luz e calor que se prolongaria ao longo de duas horas e vinte minutos. Articuladamente fluídas luzes abraçavam Frahm ao ritmo das notas que tocava no órgão construído pelo próprio para soar como um híbrido entre o orgânico (passe a redundância) e o sintético. Parece-nos ser essa a essência de Nils Frahm, um corpo sonoro e musical maior que a vida, superior a nomenclaturas e separações daquilo que soa terreno ou divino, real ou surreal, plástico ou etéreo.
Esse corpo tem batimento cardíaco, combate a inércia e a entropia, parece ter matéria e assunto inesgotável, percorrendo timbres, ritmos, alturas, envelopes e um mundo aural inteiro sem se repetir. Acalma-se, agita-se, tem vontades e emoções. E não sabemos se é Nils Frahm que dá corpo a essa essência musical ou se antes Nils Frahm tem nela o seu pulsar materno. Frahm não é músico, Frahm é música, incorpora-a, é feito dela e ela manifesta-se através dele. E perante nós abre esse espírito, trazendo o estúdio, extensão de si próprio, a palco. Revelando com humildade, simpatia e humor a anatomia do ser que integra, levou-nos com ele numa epopeia de notas e melodias muito suas, ocasionalmente parando para no-la contar por palavras e risos, esses sons que ambicionam oferecer-nos maior entendimento e empatia.
Galopante – mas também o seu sereno oposto – poderia ser, entre milhares de palavras possíveis, uma forma de descrever a sinfonia de som, luz (q.b.) e emoção que percepcionámos, esbatendo-se-nos os limites das áreas dessa percepção. Mas aquilo que ouvimos e vimos não foi um exagero de meios nem de fins, antes uma fina conjugação que preenchia a sala e os nossos ouvidos conferindo-lhes espaço também para respirar, para a resposta da acústica, estabelecendo um diálogo simbiótico e triangular entre Nils Frahm, Aula Magna e público. Aula de Música – da organologia ao solfejo – mas também de Ciências Naturais – das diferentes madeiras que ressoavam às partículas que rodopiavam magicamente, pela sala toda, qual reluzente pó de fadas pairando pela Via Láctea.
Durante mais de duas horas, fomos de Lisboa a Berlim, da Aula Magna à Funkhaus. Estivemos lá com Nils Frahm, no seu estúdio, à conversa. Ouvindo-lhe cada sílaba, cada movimento, cada toque e cada passo, simultaneamente sugados pra dentro daquela dimensão à qual só ele conhece o acesso. Ouvir e ver um concerto nunca mais será o mesmo.
Fotografia: Francisco Fidalgo