O fascínio do grande ecrã também contagiou Nick Cave. O cinema abriu-lhe portas ao imaginário dos sons desde muito cedo, mas foi na última década e meia que se tornou mais prolífico na difícil arte de musicar imagens em movimento.
Não queremos ser exaustivos quanto a este assunto. Muito pelo contrário. Um punhado de breves exemplos chegarão para que se cumpra a intenção de mostrar esta outra faceta musical do nosso bom australiano. Começou há muito a percorrer esse trilho, é um facto. O arranque deu-se com Ghosts… of the Civil Dead, no distante ano de 1988. Aí, como noutras alturas, contou com as ajudas dos amigos e companheiros de muitas outras sementeiras, Mick Harvey e Blixa Bargeld. Se esse foi o arranque, a verdade é que mais de duas dezenas e meia de bandas sonoras constam já do currículo de Cave até aos dias de hoje. Aliás, o número vai crescendo de forma muito acelerada nos últimos tempos, sendo que a dupla Nick Cave e Warren Ellis é a chave perfeita para a esmagadora maioria delas. Assim sendo, espreitar algumas torna-se imperativo neste Especial que o Altamont, em boa hora, resolveu levar a cabo.
Comecemos por The Proposition, filme australiano realizado por John Hillcoat. Para além da banda sonora ser assinada por Cave e pelo seu mais fiel parceiro desde há muito (Warren Ellis, pois claro), o guião também pertence ao músico australiano. É uma história sobre lealdade e traição, um western australiano violento e crú. O filme obteve algum impacto na crítica cinematográfica, assim como a música composta para ele. Chegou, inclusivamente, a vencer o prémio de melhor banda sonora original, tanto nos AACTA Awards, como na FCCA, as duas mais importantes instituições ligadas ao cinema downunder. Em pouco mais de 42 minutos de duração, o que se ouve nas 16 composições feitas, sobretudo, pela dupla Cave / Ellis, mais não é do que a reprodução de uma atmosfera fechada, densa, pesada e fúnebre. Os temas cantados por Cave são mais um sussurro do que qualquer outra coisa. O som predominante deriva do violino de Warren Ellis, perfeito para dar às imagens o tom espesso e hermético que elas necessitam. É um belo e delicado álbum, sem dúvida, e tem em “The Rider Song” o seu mais elevado momento. É claramente uma canção, e contrasta com os momentos mais ambientais da maior parte do álbum.
Dois anos passados, em 2007, a dupla Cave / Ellis volta a unir-se para aquela que seria a segunda banda sonora em parceria. Desta feita, o filme esteve a cargo do realizador Andrew Dominik, também ele australiano. É de novo um filme do faroeste, e mais uma vez a traição entre membros próximos volta a ser o ponto central. No que diz respeito à banda sonora de The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, há grandes diferenças em relação à anterior. Aqui o piano ganha destaque e os temas primam por uma mais intensa melodia, embora plenos de nostalgia. Há muita beleza na tristeza que se sente no decurso dos 14 temas do disco. Todas as teclas foram entregues a Nick Cave, ficando Warren Ellis com as cordas, violinos, violas, guitarras. Pouco mais se nota do ponto de vista instrumental, fazendo os músicos, muitas vezes, o contraponto dos seus instrumentos como centro das composições. A simplicidade é a palavra de ordem. O tema mais bonito e delicado talvez seja “What Must Be Done”. Parece um sonho e apetece não despertar desse encantamento.
Outro par de anos volvidos, novo momento interessante da mesma parceria. Nick Cave e Warren Ellis estão talhados para o trabalho conjunto e são, desde há muito, inseparáveis almas gémeas. Juntam-se para o filme The Road, obra cinematográfica dirigida de novo por John Hillcoat. O filme passa-se num ambiente pós-apocalítico, baseado no romance de Cormac McCarthy. Um homem e o seu filho lutam pela sobrevivência num mundo devastado sem que se perceba muito claramente o que aconteceu, mas esse é apenas o princípio de um enredo duro e assustador. A banda sonora consegue retratar de forma bem equilibrada a violência das imagens, o drama existencial e o terror vivido sem ceder a processos comuns a esse tipo de exposições visuais. Há alguma esquizofrenia em temas como “Cannibals” ou “The House” mas na maior parte do tempo, aquilo que ouvimos deixa-nos a um passo do desassossego, numa espécie de inquietação permanente. A banda sonora contou com uma orquestra de várias dezenas de elementos, o que dá à obra uma espessura sonora importante. Para se ouvir com moderação, mas igualmente com prazer.
Também em séries televisivas a dupla Cave / Ellis marcou presença. O conceituado National Geographic Channel levou a cabo uma série intitulada Mars onde se retrata a missão de astronautas a caminho do planeta vermelho. Tendo como ponto de partida a composição “Mars Theme”, toda a banda sonora, de pouco menos de 50 minutos, desenvolve-se a partir daí. O tema é cantado por Nick Cave e é pontuado por sons flutuantes, sombrios e frios. Mas a voz quente (ao fundo, sem ocupar o centro das atenções) é o contraste que tudo equilibra, assim como o coro no final da composição. A voz de Cave não se ouvirá mais quase até ao fim do álbum, regressando apenas nos instantes derradeiros, em “Space Station”, continuação perfeita da faixa inicial. O sentido circular do disco é bem notório, e é nessa circularidade que vamos viajando como se estivéssemos a ser sugados por uma qualquer força centrífuga composta por sons quase oníricos. É, de facto, uma banda sonora de grande peso e qualidade, mostrando que os dois amigos não esgotaram ainda as ideias que vão há muito construindo em conjunto.
A banda sonora mais recente que escolhemos para este texto pertence a Kings, obra de 2018 da realizadora turco-francesa Deniz Gamze Ergüven, que passou a ser conhecida pelo seu filme Mustang, representante francês aos Óscares de 2016. De todos os trabalhos mencionados neste texto este será, seguramente, o mais delicado e etéreo. Tudo aqui flutua, pairando sobre as nossas cabeças uma atmosfera de tremenda sedução. O piano ordeiro de Cave é sublime e as cordas do violino de Warren Ellis nunca o deixam a sozinho, pontuando na retaguarda, de mansinho, dando-lhe a adequada textura. É um álbum muito discreto mas apaixonante, que vai cobrindo o ouvinte em autênticos lençóis de sons, camada a camada, até nos afundarmos nele sem qualquer ponta de aflição. As emoções humanas parecem sempre à flor da pele neste álbum, o que provavelmente demonstra o grau de mestria e de ligação que esta dupla vem aperfeiçoando ao longo dos tempos. Se é verdade que muitas vezes uma banda sonora tem dificuldade em impor-se sem as imagens para as quais foram feitas, este não será claramente o caso. Um autêntico triunfo, este Kings!
E assim se conclui mais uma página deste Especial Nick Cave do Altamont. Faça por conhecer o que aqui indicamos e verá que, por vezes, ouvir um filme é uma boa maneira de também o entendermos. Basta fechar os olhos e ver o que os sons são capazes de evocar em nós.