Perante uma Altice Arena quase esgotada e com um disco novo para mostrar, a The Wild God tour veio a Lisboa exibir a luz e a sombra da carreira de Nick Cave & The Bad Seeds
Nick Cave já vestiu muitas peles ao longo da sua carreira de mais de 40 anos (contando com os anos dos Birthday Party), o que não é de estranhar dada a vida agitada, pautada por euforia e tragédia em partes iguais, que sabemos que tem levado. Felizmente para nós, Nick Cave encontra na arte que produz um veículo para exorcizar essas experiências e emoções que traz à flor da pele, tendo-nos dado já algumas das mais belas e poderosas canções da história do rock. Nos últimos anos, a pele que Cave e os seus fiéis Bad Seeds têm vestido é a de acólitos de uma igreja negra, criado em cada apresentação – e, sorte a nossa, temos tido algumas por cá – uma celebração grandiosa, emocional e quási-religiosa da tragédia da vida e da esperança que nunca se perde, esperança essa que se renova com a união que a banda consegue criar no seu público, feliz por comungar juntamente com eles, cantando os mesmos hinos. Assim, quando entrámos na Altice Arena ao fim do dia de domingo para assistir à passagem por Lisboa da The Wild God Tour, já tínhamos uma ideia do que iríamos encontrar: Domingo é dia de ir à missa.
Às 20h30, hora que marcavam os bilhetes para o início do espetáculo, entraram em palco não os Murder Capital, os special guests responsáveis pela primeira parte que calharam a Lisboa, mas a banda principal. Percebemos então que não seria desta que veríamos ao vivo os autores de outro disco fresquinho que nos entusiasmou este ano e não podemos deixar de lamentar a comunicação deficiente por parte da organização que não transmitiu os horários dos concertos de forma clara.

Embora não dispensássemos ouvir os hits de Nick Cave & The Bad Seeds, a curiosidade era muita para saber como soariam ao vivo as canções que lançaram este ano no álbum Wild God, descrito por aqui como um dos melhores trabalhos de Cave dos últimos anos e um sério candidato a disco do ano. Sem surpresas, foi ele que dominou o alinhamento desde o início. Nos ecrãs onde minutos antes se lia “Wild God” passaram a ler-se partes da letra das canções do álbum novo que abriram o concerto. Com banda completa e quatro vocalistas de apoio, à boa tradição Gospel, “Frogs”, “Wild God” e “Song of the Lake” soaram cheias e brilhantes, mostrando desde logo que o público tinha feito o seu trabalho de casa e vinha com as letras bem estudadas para participar plenamente na celebração. A presença em palco do frontman não mudou desde a última vez que o vimos no Kalorama. Arriscamo-nos a dizer que, desde o início, Nick Cave agarrou a atenção de todos os fãs naquela arena quase esgotada – da primeira fila, a quem foi amiúde dar a mão, até às últimas cadeiras do último balcão – e não mais a deixou ir até ao fim do espetáculo. Surpreendendo o público com algumas palavras de português, muito bem aplicadas e ditas com uma excelente pronúncia, Nick Cave manteve-se conversador e divertido, saltitando entre a fila da frente, o piano e o centro do palco. “This is a song about a girl” antecedeu “Jubilee Street” e “From Her To Eternity”, tocadas de rajada, na primeira demonstração da noite das habilidades punk-rock da banda. “What a band, the fucking Bad Seeds!” – clamou Nick Cave depois do crescendo louco do final de “Jubilee Street” – “I’m transforming, I’m vibrating, look at me now”. Apesar de magoado e, portanto, menos ativo do que é costume, Warren Ellis não deixou de assinalar também a sua presença no lado direito do palco, levantando-se nos momentos certos para exibir o seu violino danado.
Foi um concerto bem estruturado, em que a banda soube equilibrar bem as canções novas com os hits, os hinos rock com as baladas ao piano, conseguindo momentos de extrema intimidade – mesmo que na imensidão da Altice Arena – e grandes descargas de energia rock, sobretudo nos temas mais antigos. A tempestade que é “Tupelo”, “Red Right Hand”, que será para sempre o tema título da série Peaky Blinders, e “The Mercy Seat” foram alguns dos momentos altos da segunda metade do concerto, em que um incansável Nick Cave não deixou de correr de um lado ao outro do palco para garantir que toda a plateia tinha a mesma atenção do seu pastor, já sem gravata e visivelmente satisfeito com a resposta do público sob a forma de coros. Em relação a momentos mais emocionais, “I Need You” foi sublime, com Cave sentado sozinho ao piano e a sua expressão projetada no ecrã gigante imediatamente acima, deixando entrever a fragilidade que aquele showman tem (também) dentro de si. “White Elephant”, do álbum Carnage de Cave e Ellis, fechou a parte principal do alinhamento e Nick Cave e a sua banda despediram-se do público lisboeta pela primeira vez naquela noite (mas não a última).

O já esperado encore trouxe mais uma canção do novo álbum, “O Wow O Wow (How Wonderful She Is)”, uma bonita homenagem que Nick Cave fez a Anita Lane, membro original dos Bad Seeds e sua ex-companheira, que morreu em 2021. “Papa Won’t Leave You, Henry” – uma canção muito, muito antiga – e, de seguida, “The Weeping Song” – para chorarmos todos juntos o fim da festa – terminaram a apresentação e a banda despediu-se mais uma vez. Mas, como diz o refrão, “we won’t be weeping long”, e voltamos a ter Nick Cave em palco. Não ficaríamos surpreendidos se se viesse a constatar que, durante a performance de “Into My Arms”, tocada num piano solitário, todas as pessoas no Altice Arena flutuaram uns centímetros acima do chão, artista incluído. De repente o grandioso tornou-se aconchegante e só importava aquela melodia, impecavelmente cantada pelo seu abençoado autor, completamente entregue àquele momento, e aquele refrão, entoado a mil vozes. Foi com este belíssimo momento de emoção que nos despedimos de Nick Cave, desta vez mesmo a sério. “Foi um privilégio tocar para vocês esta noite, Lisboa”, disse-nos. Oh Nick… o privilégio foi todo nosso.
Alinhamento:
- Frogs
- Wild God
- Song of the Lake
- O Children
- Jubilee Street
- From Her to Eternity
- Long Dark Night
- Cinnamon Horses
- Tupelo
- Conversion
- Bright Horses
- Joy
- I Need You
- Carnage – Nick Cave & Warren Ellis cover
- Final Rescue Attempt
- Red Right Hand
- The Mercy Seat
- White Elephant – Nick Cave & Warren Ellis cover
Encore:
- O Wow O Wow (How Wonderful She Is)
- Papa Won’t Leave You, Henry
- The Weeping Song
Encore 2:
- Into My Arms
Fotografias: Inês Silva

















