No terceiro e último dia de MEO Kalorama, a noite foi do anjo negro. Naquele que foi o concerto do festival, Nick Cave prestou um serviço religioso aos festivaleiros, que saltaram, berraram e choraram. A noite foi de nudez espiritual — e física de Peaches, uma força da natureza.
Ao contrário do que se possa pensar, a qualidade de um concerto não se mede só pela qualidade da música. Nem todos os bons discos soam bem ao vivo e nem sempre os bons concertos são tocados pelos músicos mais virtuosos. Ainda assim, por vezes, a sorte sorri-nos e damos por nós no lugar certo à hora certa, no momento perfeito em que se junta a qualidade da música à força dos performers e ao entusiasmo devoto do público. São estes os concertos que fazem História, capazes de consagrar carreiras inteiras e que toda a gente jurará a pés juntos que foi. Porque não é preciso ser uma pessoa de fé para concordar que ouvir música ao vivo é uma experiência quase religiosa, um ato de comunhão, de partilha e de catarse. Foi assim que se viveu o terceiro e último dia de MEO Kalorama: em dia de missa negra, com Nick Cave como sumo sacerdote, tivemos a consagração de ídolos, comunhão de ideias e nudez espiritual.

The King is born in Warracknabeal
Nick Cave já há muito que assegurou o seu lugar no clube das lendas do Rock. Ídolo verdadeiramente multidisciplinar, já nos habituou a um fluxo constante de álbuns, filmes e livros, enquanto mantém uma rara abertura e proximidade com os fãs. Por tudo isto, era notória a antecipação daqueles que se juntaram junto ao palco MEO para o ver, num misto de ansiedade e reverência. À hora marcada entraram os Bad Seeds seguidos pelo seu frontman. Senhoras e senhores, eis o pároco de serviço para esta noite.
O concerto abriu com os hinos rock “Get Ready for Love” e “There She Goes (My Beautiful World)”, e pudemos experimentar a força da banda que acompanha Nick Cave. Este salta pelo palco, em espasmos, corre pela plataforma montada junto às primeiras filas, brinca com quem ali se aglomera na esperança de lhe conseguir tocar, quase nos faz esquecer que já não é um rapaz novo, tal é a parecença com os seus tempos mais punk. Só tocaram duas canções e estamos exaustos. Nick Cave explica: este é o último concerto de uma longa tour de três meses por festivais de verão (“and we’re in beautiful Lisbon!”). Está dado o mote, a noite será de celebração e de catarse coletiva. Sem perder tempo, o mestre de cerimónias continua: “I wanna tell you about a girl”. Demorando-se junto ao público (“eu já vou praí”, disse a certa altura à banda no palco, “mas é tão divertido aqui em baixo”), Nick Cave canta From Her To Eternity como um pregador e o público recebe o sermão acompanhando-o no refrão. No palco, Warren Ellis, velho companheiro de Cave, dá o seu próprio espetáculo, perdido num violino caótico, inteiramente adequado ao ambiente punk da canção.
Seguem-se momentos mais calmos e intimistas. Saltitando entre o piano e o seu púlpito junto à plateia, Nick Cave canta-nos O Children (que dedica a uma fã aniversariante), Jubilee Street (uma “história terrível sobre um amor que corre mal), Bright Horses, I Need You e Waiting For You. O silêncio do público deixa perceber a carga emocional destes momentos, sentimo-nos esmagados pela presença de Nick Cave e pelo à vontade com que nos deixa entrever a dor crua que exorciza através das suas canções. Atrevemo-nos a dizer que até os donos dos corações mais empedernidos terão ficado com um nó na garganta. Continuando a discorrer os hits da sua já extensa carreira, numa setlist quase de best Of, Tupelo, Red Right Hand e The Mercy Seat transformaram Nick Cave num maestro e o público do parque da Bela Vista no seu coro, respondendo sem hesitar aos seus movimentos de braços e repetindo mantras como “just breath”, “all night long” e até um humorístico “Hannah Montana”. Voltando ao piano, ouvimos The Ship Song, outro momento sublime, ao qual se seguiram Higgs Boson Blues e City of Refuge. Antes do encore, Cave e Ellis presentearam-nos ainda com White Elephant do disco CARNAGE que ambos lançaram em 2021, poderosa canção para lembrar que, para além da quase-religiosidade, estar em palco também é um ato político. A banda despediu-se e foi feita a devida ovação, ainda que pouco convencida. Todos sabíamos que não nos estávamos a despedir por muito tempo.
Feita a ritual pausa do encore, Nick Cave regressou ao palco sozinho e sentou-se ao piano. “Esta próxima canção é dedicada à Beatriz Lebre, cuja mãe me mandou uma carta muito bonita”, disse-nos apenas. Ao ouvirmos os primeiros acordes de Into My Arms percebemos que está a falar da jovem estudante de Psicologia, assassinada por um colega que a perseguia. Naquele que foi sem dúvida o momento mais bonito de todo o concerto, o parque da Bela Vista cantou a uma só voz “Into my arms, O Lord”, guiados pela mestria do santo padroeiro da angústia. Ainda abalados pela força do momento, vemos os Bad Seeds a regressar ao palco porque ainda faltam canções. Vortex e Ghosteen Speaks, fazem-se ouvir e, no fim, Nick Cave agradece à banda que manda descer ao fosso. “Thank you for coming along” diz-nos “We can’t tell you how much that means”. Nós é que agradecemos a viagem. Incansáveis tocam ainda “The Weeping Song” e despedem-se finalmente, perante uma enorme ovação.
A banda sai do palco e nós continuamos siderados, em espanto com o que acabou de acontecer, felizes por ter feito parte e por poder experimentar a presença de um tão fantástico performer, ainda que aturdidos pela sua força e pelo quanto de si deixou no espetáculo. Foi com certeza um desses concertos especiais, que daqui a uns anos todos dirão que viram. Mas felizes são os que estiveram na enorme missa negra que Nick Cave ministrou no Kalorama.

A consagração dos Ornatos Violeta e a nudez provocatória de Peaches
Apesar de levar para casa a taça de concerto mais memorável do dia, o espetáculo de Nick Cave não foi a única boa performance do dia. Ao fim da tarde subiam ao palco principal os Ornatos Violeta, lendas vivas do Rock português, a continuar a sua reunião que ia ser única, mas que perdura, e ainda bem. Percorrendo os hits dos seus dois álbuns, Manel Cruz e companhia apresentaram-se em Lisboa bem-dispostos e energizados, energia essa que não demoraram a passar aos fãs devotos que cantavam com eles todas as letras. Manel Cruz, outro excelente frontman, saltita pelo palco sem camisola, faz crowd surf (“alguém me agarrou o cu, agora não sei quem acusar de assédio”), e mantém um ar de miúdo feliz e surpreendido com o sucesso da sua música. Ouvimos Para Nunca Mais Mentir, Tanque e Dia Mau, que teve de ser recomeçada quando Manel trocou a ordem dos versos, lapso que imediatamente todos lhe perdoámos (“hoje é um dia bom!”, disse-nos). Ouvi Dizer dá origem à reação mais entusiasmada do público, que canta todos os versos, incluindo o poema originalmente declamado por Vítor Espadinha. A discografia dos Ornatos Violeta, embora curta, conseguiu o estatuto de referência idiscutível e todas as canções são verdadeiros hinos. Capitão Romance e Chaga são mais exemplos disso mesmo e, se provas faltassem, a reação da plateia comprova-o, com cânticos e saltos que fazem levantar pó do relvado maltratado no parque da Bela Vista. Mas o tempo não para e no palco secundário já estava a começar um outro concerto, desta vez algo completamente diferente. Ou seria?

Peaches entrou em palco sem pedir licença a ninguém, com um chapéu em forma de vulva e pouco mais vestido. “Olá, eu sou a Peaches e estou aqui para celebrar o vigésimo aniversário do meu álbum The Teaches of Peaches” disse-nos num tom de alguém que está com pouca paciência para salamaleques e quer ir direta ao assunto. “Vamos divertir-nos!”. Se há coisa que Peaches nunca foi é consensual. Abordando sem pudores temas como a o empoderamento e a sexualidade feminina, Peaches é rock & roll no estado puro e foi isso mesmo que veio oferecer ao palco Colina do Meo Kalorama. De repente vimo-nos envolvidos num filme de John Waters com Peaches e as suas ajudantes de meias de renda a entreter-nos com mudanças de roupa (ou remoção total da mesma) e crowd surfs em que dá ordens ao público: “guardem os telemóveis e ajudem-me, venham para aqui, se eu cair acaba-se o concerto”. Hits como Vaginoplasty, Boys Wanna Be Her e Fuck the Pain Away foram os pontos altos de um concerto que, mais do que tocar as canções dos discos, é uma autêntica performance de sexo, drogas e rock’n’roll, com direito a nudez completa, dança e mensagens políticas: a certa altura Peaches exibiu orgulhosamente um maillot onde se podia ler “thank god for abortion”. Peaches é sexualidade e irreverência e, embora pareça caótica, sabe muito bem o que está a fazer no palco e cada movimento é calculado para surtir um determinado efeito. Afinal, o dia também foi das front women.

Música portuguesa a dar cartas no encerramento do festival
Num dia com nomes tão fortes no cartaz é fácil focarmo-nos só nos cabeças de cartaz, mas o último dia do Meo Kalorama teve mais para ver e a música portuguesa ainda deu cartas.
A abertura do palco principal coube a Tiago Bettencourt e nem o sol abrasador da tarde demoveu os fãs que se iam aos poucos acumulando em torno do Palco MEO. Agradecendo a quem chegou cedo para o ver e acompanhado por um Pedro Branco (guitarrista) de perna engessada, mas a dar tudo, Tiago Bettencourt percorreu algumas das canções mais queridas da sua carreira como Carta, ainda do tempo dos Toranja, e números mais mexidos como Maria ou Morena. Com o entardecer e a chegada de temperaturas mais frescas veio também Canção de Engate, mas o material não estava do lado do artista no cover deste clássico de Variações: Tiago Bettencourt tentou descer até à passadeira (que Nick Cave mais tarde percorreria) e aproximar-se do público, mas o comprimento do cabo da guitarra não o permitiu. “Devíamos ter comprado mais”, brincou o cantor.
Imediatamente a seguir, mas no palco Colina chegava a hora da festa de Moullinex, que nos trouxe a sua eletrónica fervilhante e impecavelmente executada em palco. Apesar de estarmos mais habituados a ouvir Moullinex com menos luz solar (o músico de Discotexas subiu ao palco às 18h), a plateia muito bem composta não se incomodou nada com a hora precoce e dançou, respondendo aos sons que os quatro elementos em palco iam produzindo. Moullinex despediu-se deixando o repto: “vemo-nos em Lisboa no Coliseu dos Recreios a 15 de outubro, venham por favor”.

Com o fim do Kalorama, dita-se o fim da temporada dos festivais de verão. Essa despedida foi orquestrada pelos Disclosure, no palco principal. Três minutos antes do previsto, 00:45, ouve-se uma voz masculina imponente a falar sobre como ultrapassámos a pandemia, um período que “fechou as discotecas durante demasiado tempo” – e informou que é “hora de amar”. Não há que enganar: estava-se ali para dançar. Com destaques para as explosões de euforia em Ultimatum, pela voz de Fatoumata Diawara, e When a fire starts to burn, dançou-se noite adentro. Interagindo com o público, os Disclosure pediram para os festivaleiros sentarem-se e esperarem pelo drop de In My Arms. O apogeu foi em Latch, hit cantado por Sam Smith.
No palco Futura, os Club Makumba, novo e muito interessante projeto de Tó Trips, seriam a última banda a subir ao palco Futura. Apesar de alguma poluição sonora vinda do concerto a acontecer ao lado, o som cheio dos Club Makumba (guitarra, bateria, baixo e saxofone) chegou para preencher o palco Futura. “Nós somos os Club Makumba, caso ainda tenham dúvidas, e somos a última banda por isso é para partir isto tudo” disse-nos o saxofonista Gonçalo Prazeres. Apesar do público já estar visivelmente cansado e/ou a evitar mexer-se para não levantar o muito pó existente junto àquele palco, as canções dos Club Makumba, que soam a uma mistura de Dead Combo com Morphine com música africana, acabaram por contagiar os festivaleiros resistentes, tanto assim que no fim a banda voltou para um encore. O alinhamento incluiu grande parte do disco homónimo deste ano e ainda duas canções novas que farão parte do novo trabalho.
Autores: Alexandre R. Malhado e Ana Lúcia Tiago
Fotografia: Cecile Lopes (excepto onde assinalado)