Já nestas páginas escrevi sobre o meu adorado Nick Cave. A propósito de um disco, e também sobre uma particular canção deste The Boatman’s Call. A de abertura, para ser mais exato. Avanço agora, uma vez que algum dia teria de ser, para aquele que é o meu disco preferido de um dos músicos vivos que tenho como soberano e imortal. A tarefa, por isso mesmo, não é fácil, mas tentarei cumpri-la sem grandes exageros (desculpáveis, assim espero que os entendam), sem que muito se note o amor desmesurado que tenho por eles, disco e artista. Nick Cave & The Bad Seeds conseguiram, no final dos anos setenta, mudar o rumo da trajetória que vinham traçando há muito, e fizeram-no com a têmpera dos grandes, dos escolhidos. The Boatman’s Call representa, portanto, um corte previsto (se tivermos em conta a suave mudança de pequenos pormenores de discos anteriores), mas mesmo assim radical, e também um momento sem retorno equivalente, uma vez que os álbuns seguintes, por muito interessantes que sejam, como é o caso do ótimo No More Shall We Part (2001) por exemplo, não mais revelaram a preciosa delicadeza, o minimalismo de meios e de formas, a catarse que se sente no disco de 1997.
Recuemos um pouco até Murder Ballads, saído a público um ano antes. Ele terá sido um disco em que se adivinhava o fim de uma época e cujo expoente máximo aconteceu com Let Love In (1994), obra fundamental e paragem obrigatória para os que quiserem conhecer a obra do australiano e das suas sementes malignas. Murder Ballads começa a mostrar uma outra forma de compor, um outro estilo mais despido, mais cru, mais direto de fazer canções. Nesse sentido, ele é o fim e o início de um percurso mais intimista, cujo primeiro capítulo é The Boatman’s Call. O que terá pesado para tão notória mudança? O difícil relacionamento com Polly Jean Harvey, e o seu inevitável fim? O afastamento das drogas que durante tanto tempo estiveram presentes na sua vida? A necessidade orgânica (por não dizê-lo?) de um caminho onde o transcendente pudesse estar presente como equação central da existência? A morte, metáfora suprema do fim? O questionamento de tudo, da carreira, da vida e do significado de ambas? A verdade é que este poderia ter sido muito mais um disco a solo do que um álbum de Nick Cave & The Bad Seeds. Até o próprio Cave concordou com essa ideia. Num interessante essay sobre The Boatman’s Call feito por Jim Sclavunos (músico há muito ligado ao universo caveano e aos Grinderman), aparece escrito algo que ajuda a perceber melhor o disco de 1997, e que se resume a uma única questão: estariam os Bad Seeds dispostos a restringir o seu poderoso som, a apagar-se, a diluir-se enquanto persona artística, para que um novo Nick Cave pudesse sobressair da forma tão visceral? A resposta é brilhantemente dada no disco, e é afirmativa.
As canções memoráveis são mais do que muitas, quase todas, umas mais conhecidas do ouvinte comum (se é que o ouvinte comum ouve Cave, coisa que não tenho como certa), outras menos. Entre as primeiras, “Into My Arms”, “Lime Tree Arbour”, “People Ain’t No Good” e “(Are You) The One That I’ve Been Waiting For?” são as mais representativas, e nelas encontramos a sofrida beleza sublimada que tão bem caracteriza o disco. Nas outras, nas que não terão ficado na retina auditiva dos menos atentos, podemos referir “Brompton Oratory”, “There Is A Kingdom”, “Where Do We Go But Nowhere?” e “Far From Me”, (aquele baixo, meu Deus, aquele baixo divinal!), canção central para percebermos um dos sentidos de maior significado do álbum, o da sua vida íntima amorosa. Adoro-a, e adoro os versos que dizem “For you I am dying now / You were my mad little lover / In a world where everybody fucks everybody else over”. Depois, depois há Deus e o relacionamento possível entre o homem e aquele que o terá criado. Nesse sentido, “There Is A Kingdom” merece leitura atenta, “Such is my faith for you / Such is my faith”…
Resumindo o que talvez não devesse ser resumível, The Boatman’s Call é muito mais do que um disco. É também uma fatia biográfica sobre um certo período íntimo e artístico de Cave, uma página virada para um novo e singular caminho que deu outro belo fruto em No More Shall We Part (2001), que dificilmente teria sido feito se este meu disco de estimação não existisse. A beleza do piano de Nick Cave percorre todo o álbum e é a sua maior âncora. É ele que dita as agruras, as nuances, o sofrimento, como se cada tecla tocada ocupasse o lugar de lágrimas e anseios. É, sobretudo, um disco inquietante, muito mais do que um disco tranquilo. Não há, aliás, ponta de tranquilidade nas 12 faixas de The Boatman’s Call. Por isso ele é tão imprescindível, tão clássico (no sentido dado aos clássicos por Italo Calvino), tão soberano, tanto naquilo que diz, como naquilo que evoca.
É um disco para toda uma vida!
*os versos iniciais deste texto pertencem a “People Ain’t No Good”.