A prestação de Navy Blue não foi propriamente comprida, mas, no fim, as pessoas ficaram satisfeitas com o conteúdo do concerto, porque não só escutaram grande parte das faixas que compõem os álbuns Song For Sage: Post Panic! e Navy’s Reprise , como ouviram novos joints musicais.
Não é todos os dias – ou todas as noites … – que os palcos portugueses recebem um artista como Navy Blue, um dos príncipes mais poderosos do hip-hop underground norte-americano. O destino, ou a equipa que agencia Sage Elsesser (o nome de nascimento do músico), quis que o rapper norte-americano iniciasse o seu tour pela Europa (Langston Blues Tour) em Lisboa, na sempre acolhedora, íntima e inventiva Galeria Zé dos Bois. Foi um bom ponto de partida, porque a cidade é envolvente e o público português é participativo.
Deste modo, a ZDB, localizada no coração do Bairro Alto, recebeu o rapper de 25 anos de forma calorosa e expectante: a plateia sabia, à partida, que as próximas duas horas seriam especiais, porque Navy Blue, de mic na mão, estaria no centro daquele palco apertado a dar aulas de hip-hop, explicando à plateia de que forma é que o jazz e o soul se cumprimentam sempre que se cruzam nos circuitos de um sampler.
Ainda que tenha nascido na soalheira Los Angeles, Navy Blue diz, com orgulho, que vem de Nova Iorque, porque, efetivamente, vive em Brooklyn (em Bedford-Stuyvesant), e está apaixonado pelas sinergias musicais e urbanas da Big Apple, algo que se destaca nas suas produções cujas letras são diferenciadas: através de versos introspectivos, Navy Blue revela alegorias de uma existência comum e partilha histórias pessoais.
A apertada sala de concertos da ZDB estava totalmente ocupada quando Navy Blue subiu ao palco. Antes do convidado de honra iniciar a cerimónia para a qual tinha sido chamado, demahjiae ofereceu um pequeno – mas enérgico e barulhento (no bom sentido da palavra) – concerto de abertura. O rapper demonstrou um enorme à vontade com o público, que ficou surpreendido quando Navy Blue afirmou que aquela tinha sido a primeira experiência de demahjiae fora dos Estados Unidos da América. (Mais tarde, perto do fim do concerto, Sage iria admitir também a sua profunda admiração pelo amigo e colega, com quem fez a faixa “Petty Cash”, do álbum Navy ‘s Reprise).
Estava uma noite demasiado quente para março. Entre a sala de concertos e o bar da ZDB, as pessoas julgavam que o verão tinha vindo mais cedo – no fim do concerto, beberiam cervejas frescas servidas em copos de metal, e conversariam sobre a música que tinham escutado, contariam histórias e soltaram gargalhadas. A maioria das pessoas estava apenas de t-shirt, porque o calor era intenso, tanto que, durante as lições de Navy Blue, entre faixas (e antes dos aplausos), era possível escutar o ruído dos dois AC’s da sala, fixados em paredes opostas, que tentavam arrefecer uma plateia cada vez mais animada por beats quentes.
De certo modo, o concerto de Navy Blue foi um alívio – estávamos a precisar de uma noite destas. Fuck Covid, admitiu o rapper, antes de pedir ao público um período de meditação, que foi devidamente respeitado. Assim que o momento silencioso terminou, Navy Blue preparou-se para entrar em campo, e, ao despir um hoodie azul-escuro com o seu próprio nome como motivo frontal, revelou uma camisola de futebol especial: a da seleção portuguesa. Quem estava na ZDB delirou, mas não estranhou: quem acompanha minimamente Sage sabe que ele faz parte daquele grupo minúsculo de norte-americanos que seguem o verdadeiro futebol; que apoia o Arsenal, de Londres; e que idolatra Ronaldinho Gaúcho (quem não?). Numa altura em que o apuramento para o Mundial de 2022 está em risco, o mister Fernando Santos podia sacar um coelho da cartola e convocar Navy Blue, o número «10» de que precisamos para vencer as próximas duas partidas. Se jogar à bola da mesma forma com que controla o seu flow, é craque, e faz a diferença – é daqueles que rappa com as meias na canela.
A prestação de Navy Blue não foi propriamente comprida, mas, no fim, as pessoas ficaram satisfeitas com o conteúdo do concerto, porque não só escutaram grande parte das faixas que compõem os álbuns Song For Sage: Post Panic! e Navy’s Reprise (Àdá Irin foi um bocadinho posto de lado), como ouviram – pela primeira vez – novos joints musicais, um dos quais presta uma homenagem ao late Nipsey Hussle e ao refrão que imortalizou a “Shook Ones: Part II”, dos Mobb Deep. Ainda assim, é legítimo considerar que Navy Blue poderia ter mimado um bocadinho mais a plateia com mais rap’s, em vez de ter alinhado num festival de beats com o DJ de serviço, Ahwlee, e demahjiae. Contudo, as pessoas não manifestaram desalento; reagiram com bastante entusiasmo à proposta de Navy Blue, até, e continuaram a dançar e a abanar a cabeça o som de batidas desconhecidas, mas valiosas, enquanto outras permaneceram no pátio exterior da sala de espetáculos, ou subiram ao terraço da ZDB, onde continuaram a beber cervejas frescas, idealizadas para noites de verão, mas saboreadas durante o ano inteiro, nos cruzamentos do Bairro Alto, que naquela noite uniu Lisboa a Nova Iorque.
Fotografias gentilmente cedidas por Catarina Pinto.