Numa sociedade como a de hoje, querer estar sozinho é uma anomalia e o mundo nunca nos deixa esquecer isso mesmo. E é nessa vontade de estar a sós que entra o Aromanticism – a falta de interesse ou desejo romântico.
Num mundo de canções-pastilhas, em que um tema com mais de cinco anos é considerado velho, não há espaço para Moses Sumney, um músico que merece um – logo ao primeiro disco – um lugar no panteão da verdadeira soul contemporânea, onde tem argumentos para ombrear com Charles Bradley, Benjamin Clementine, Sharon Jones, James Blake ou Beyoncé. Não será disparatado considerar At Least For Now – o disco que deu a conhecer ao mundo a fragilidade interior do magnífico Benjamin Clementine – como ponto de partida para Aromanticism. E, neste período em que o músico londrino alastra o seu espectro poético para abordar temas verdadeiramente fracturantes da sociedade do século XXI – e não, não é um disco sobre o preço exorbitante do novo iPhone ou a falta de transportes públicos em Lisboa, nem mesmo sobre os ciganos de Loures que não pagam impostos (apesar dos verdadeiros problemas que afectam esta etnia serem tão importantes de serem notabilizados como muitos dos temas abordados por Clementine em I Tell a Fly) –, Moses escolhe abordar os conflitos internos e obrigar-nos a uma reflexão interior, como fizera antes o homem que mandou as condolências aos medos e às inseguranças.
E, se At Least for Now era teatralidade, Aromanticism é subtileza e, onde em Benjamin tudo era simples e sincero – a voz profunda e um piano -, Moses apresenta-se com uma realidade artificial. A realidade de Sumney é alicerçada na verdade e honestidade dos poemas e a artificialidade é dada pela voz – com um falsete que parece invocar Nina Simone ou Jeff Buckley – e pelas orquestrações complexas e espaciais que vão preenchendo os curtos silêncios. O balanço entre as quatro componentes essenciais – o instrumental, a produção, a voz e as palavras – desagua numa maturidade inesperada para um primeiro disco vindo de um compositor com 25 anos. Os onze temas, trabalhados até ao âmago durante mais de três anos, devem tanto à soul e ao jazz como à pop e ao folk e cada canção é um testemunho da minuciosa atenção do seu autor.
Num disco onde o tema central é a incapacidade do narrador de se relacionar romanticamente com os outros – já que se vê como um ser à parte (We cannot be lovers/ ‘Cause I am the Other/ We cannot be lovers/ Long as I’m the Other) -, a verdadeira questão sobre a qual Sumney – que era um miúdo tão tímido que escondia os seus poemas debaixo do colchão para ninguém os encontrar – nos devia obrigar a reflectir é se ainda sabemos estar sozinhos num mundo que parece impedir-nos de estarmos realmente sós. As redes sociais impingem-nos amigos e pessoas que talvez conheçamos, pedem que nos conectemos de forma a criar uma rede de contactos cada vez mais extensa, ou a decidir quem queremos conhecer por uma fotografia e resumir uma possível relação a uma passagem de um dedo para a esquerda ou direita. Numa sociedade como a de hoje, querer estar sozinho é uma anomalia e o mundo nunca nos deixa esquecer isso mesmo. E é nessa vontade de estar a sós que entra o arromanticismo – a falta de interesse ou desejo romântico.
O tema do arrromanticismo é abordado através de um personagem sem nome que rejeita todas as possibilidades de amor a cada canção e que serve de casulo protector para a verdadeira identidade do criador. E numa das duas canções em que a personagem não se esconde por detrás do falsete que protege o seu verdadeiro eu – “Stoicism” – percebemos a origem desta incapacidade de se relacionar romanticamente com os outros: «So, as a mild-mannered child, my mom would drop me off in our family’s second-hand Mitsubishi caravan and I would glance back, before my descent, to mutter “I love you”. In turn she’d nod her head and turn to the road ahead and sigh: “thank you.” Thank you…» [«Como uma criança gentil e submissa, a minha mãe deixava-me, com a caravana Mitsubish em segunda mão da família, e eu olhava para trás, enquanto descia, para murmurar “eu amo-te”. Ela, por sua vez, acenava com a cabeça, olhava para a estrada em frente e suspirava: “Obrigada”. Obrigada…»]
E, apesar de se distanciar do amor romântico, Moses nunca rejeita a companhia de outros seres humanos (“Don’t bother calling, I’ll call you”; “I’m not triyn to go to bed with you/ I just wanna make out in my car”; “All my old lovers have found others”). E apesar de toda a música no disco vir de Sumney, não deixa de ser cómico que seja no tema onde o músico fala sobre o seu mundo sozinho (Lonely World) em que tenha pedido ajuda de outros músicos: Paris Strother, Thundercat e Jamire Williams.
Ao mesmo tempo que nos força a reflectir interiormente ao longo de todo o disco, o músico não deixa de chamar a atenção para os grandes dramas que afectam aquela parte do mundo que não é a nossa e que as redes sociais tendem a esconder, por não serem instagramáveis o suficiente (“não é engraçado como um estômago sem comida parece estar cheio”, pergunta-nos em “Plastic”). Enquanto o mundo nos força a estarmos em constante contacto com os outros – mas nunca com o Outro – a capacidade de resistir a esse envolvimento forçado é lentamente destruída, dando espaço a que criemos uma persona que não reflecte o nosso verdadeiro ser – questões de ego e superego que fariam Freud consumir doses inimagináveis de cocaína para tentar descodificar. É esse o mundo que Sumney rejeita a cada canção.
Aromanticism é uma pérola musical, um livro aberto para a alma de um dos mais proeminentes músicos dos últimos tempos. A reflexão interna e externa, a coragem de admitir uma condição que o torna num Outro – alguém que assume não necessitar de amor romântico na sua vida – e a sensualidade com a qual nos transmite essa condição fazem de Moses Sumney um príncipe único. Um príncipe que só precisa de si mesmo para conquistar o mundo.