Todos aqueles que gostam verdadeiramente de música e que a ela se entregam durante grande parte das suas vidas, já terão ouvido a expressão «the difficult third album». Em si mesma, a designação desse terceiro momento na carreira de um artista é, há muito, um clássico do meio musical. Todos sabemos, também, o quão enganadora pode ser, e sobretudo temos perfeita consciência de que o interessante não é encontrar nela uma espécie de fatalismo, que na verdade não existe. Ela representará, no limite, a constatação de um «síndrome criativo» e pouco mais do que isso. É, muitas vezes, um momento marcante, capaz de produzir um disco de viragem, uma obra de rutura, um passo assumidamente diferente dos dois primeiros, e ao longo da história da música do século XX são inúmeros os exemplos disso mesmo. Quantas vezes os artistas se perderam em discos que revelaram mais a grandeza dos seus egos e menos os seus reais talentos? E quantas vezes foi exatamente o contrário disso que se verificou? Muitas, muitas mesmo, é a resposta para ambas as perguntas, obviamente. A vontade de produzir um statement conceptual, a obrigação editorial de conseguir fazer um disco comercial ou até mesmo a prevalência de uma grande dose de indulgência por parte do artista – mais interessado em si mesmo e nas suas ideias do que na existência de um público que quer ouvir algo que lhe agrade –, todas essas variantes, e outras mais ainda, já produziram inúmeras catástrofes sonoras. No entanto, e a bem da verdade, também é certo que outras tantas vezes o resultado final foi bem diferente, para (muito) melhor. O sentido de risco comporta sempre os perigos inerentes ao fio da navalha. Por tudo isto cabe-me fazer, neste texto, uma viagem pessoalíssima por alguns dos «difíceis terceiros discos» do meu contentamento. Viajar é, como bem sabemos, um ato de partilha, portanto o melhor é entrarmos em trânsito sem demora, na esperança de que os 10 «apeadeiros» escolhidos não vos deixem indiferentes.
1) Os Mutantes – A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado (1970)
Este é o único disco de língua portuguesa desta lista. No entanto, para lá das letras cantadas, há um espírito tropicalista (e, portanto, universal) em todo o disco que transcende esse facto e faz deste álbum um trabalho que pode ser entendido por qualquer ouvinte de qualquer país, falante de qualquer língua. A linguagem d’Os Mutantes sempre foi assim, e por isso é que alguns dos grandes nomes da música lhes prestam homenagem assiduamente. Mais psicadélicos do que nos dois primeiros discos (sim, eu sei que esta opinião é discutível), cedo se percebe que alguma coisa mudou na banda. A capa e a contracapa dão de imediato essa sensação. O interior apenas confirma a intenção dos manos Baptista e de Rita Lee em fazer algo (ainda mais) far out. Basta ouvir a canção inicial – «Ando Meio Desligado» – para que percebamos o que temos perante os nossos ouvidos. Haverá disco mais delirante no rock tropicalista brasileiro? Talvez não. A canção já referida e outras como «Quem Tem Medo de Brincar de Amor», «Ave, Lúcifer», «Desculpe, Babe», «Meu Refrigerador Não Funciona», e não refiro outras para não as incluir todas, fazem deste A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado um marco na história sonora da minha vida, bem como na da música brasileira, o que é bem mais importante. Todo o psychedelic rock deveria ser assim.
Ah, é verdade: não deixem de ouvir em altos berros a canção «Haleluia» para verem o que é rezar.
2) Kevin Ayers – Whatevershebringswesing (1971)
Pouco se chorou a morte de Kevin Ayers. O mérito que teve enquanto músico, no entanto, não escapou aos amantes da boa música. Kevin Ayers foi um verdadeiro génio, um eccentric english como poucos houve. Depois de sair dos Soft Machine, resolveu deixar marca em nome próprio na história da música psicadélica britânica e na Canterbury scene. Depois de Joy of a Toy, o seu disco de estreia, e do menos bem recebido Shooting at the Moon, Ayers explode em criatividade, experimentação bem doseada e psicadelismo angelical num lote brilhante de canções – uma das suas melhores composições de sempre está aqui presente, dando nome ao álbum, e que tem solos de guitarra do outro mundo feitos por Mike Oldfield. Como resistir a um dos álbuns mais charmosos que alguma vez ouvi? Complexo, por vezes, mas encantador, sempre. Kevin Ayers é, ainda hoje, e por mais estranho que pareça, um dos best kept secrets da música inglesa. Quando se ouve Whatevershebringswesing pela primeira vez, nunca mais se é o mesmo. A sério. Se não teve ainda o prazer de ouvir este verdadeiro tesouro, esta verdadeira jóia da coroa britânica, trate de o fazer da forma mais rápida possível. É um favor que faz a si mesmo.
3) Neu! – Neu!’75 (1975)
A minha costela kraut é bem saliente, como alguns saberão, e quem padece desse bem só pode revelar apreço pelos Neu!, como é o caso. Depois de Neu! e Neu!2, a dupla Klaus Dinger e Michael Rother fez a sua obra prima. Este disco (o da capa preta, com a inscrição do nome da banda a branco) tem o melhor lado A de sempre do universo do krautrock. «Isi» (diminutivo alemão para Isabella) e «Seeland» são esmagadoramente belas. A primeira composição leva-nos no ritmo motorika até ao infinito, a segunda traz-nos de volta por entre as nuvens, como que pairando no ar, até aterrarmos em «Leb’ Wohl» em serenidade absoluta e de bem com a vida. Assim se passam os primeiros 20 minutos e 48 segundos do disco. No entanto há ainda mais por descobrir e desbravar. As três composições que preenchem o lado B do disco (prefiro utilizar este tipo de expressões por se tratar, originalmente, de um álbum em vinil) são igualmente esplendorosas, embora menos etéreas, mais «rockeiras», com uma atitude mais punk: «Hero», «E-Musik» (que quer dizer «música séria») e «After Eight» completam o colosso musical que é, e será para todo o sempre, Neu! ’75.
4) Blondie – Parallel Lines (1978)
Para os Blondie, o «difícil terceiro disco» foi o melhor que lhes aconteceu em toda a carreira. A seguir aos bons Blondie e Plastic Letters, nesta altura com um novo produtor e uma vontade revigorada de conquistar o mundo, Parallel Lines catapultou a banda de Nova Iorque para o plano divino, lugar onde poucos chegam e menos ainda permanecem. O que dizer de um disco que tem uma capa icónica, temas como «Heart Of Glass», «Sunday Girl», «One Way Or Another», «Hanging On The Telephone», «Picture This» e ainda as não-tão conhecidas faixas, mas igualmente excelentes, «Pretty Baby», «11.59» ou «Just Go Away»? Valerá a pena acrescentar muito mais depois de referidos tantos atributos em forma de canções tão marcantes quanto estas? Quando o disco saiu, e de uma maneira tão súbita quanto merecida, os Blondie viram-se no topo do mundo. Logo eles, que haviam sido (quase) menosprezados por Patti Smith e pelos Television, por exemplo, seus companheiros dos tempos underground do mítico CBGB. A história faz-se destas coisas, para o bem ou para o mal. Mike Chapman, o mago produtor que transformou a forma de tocar dos Blondie, aprimorando-os e retirando deles o seu melhor, ainda os acompanhou até ao último suspiro (leia-se The Hunter) da primeira e verdadeira fase da banda. Para mais, o sucesso de Parallel Lines estendeu-se ao álbum seguinte, o assombroso Eat To The Beat. No entanto esse é já o quarto álbum da banda de Debbie e companhia e por essa razão já não pode figurar neste texto.
5) The Human League – Dare! (1981)
Os versos iniciais de Dare! (grafo o título com ponto de exclamação por ter sido assim que o vi impresso pela primeira vez, quando em 1982 comprei o álbum em vinil, embora noutras posteriores edições, que também tenho, a grafia tenha sido alterada, e o sinal de pontuação retirado) são míticos, e ainda hoje, quando os ouço cantados pela voz de barítono de Phil Oakey, me arrepio: «Take time to see the wonders of the world / To see the things you’ve only ever heard of». O disco, quando veio a público, foi um enorme sucesso, mas os tempos não eram fáceis, uma vez que os dois membros fundadores da banda haviam saído para formarem os (pirosos) Heaven 17. Oakey tomou então os comandos e contratou as schoolgirls Susan Ann Sulley e Joanne Catherall, alterando-se por completo a imagem e o som do grupo. Na altura, depois do tremendo sucesso de Dare!, a New Musical Express chegou a proclamar na primeira página que «one day all music will be made like this». Os The Human League passaram muito rapidamente de uma fase eletrónica experimental e avant-garde para outra em que se tornaram uma banda declaradamente pop, sem ponta de vergonha nisso. Pop de enorme qualidade, dançável, mas também capaz de, num mesmo álbum, permitir a coexistência de temas mais negros e mais cerebrais. Tudo é bonito em Dare!. A capa é absolutamente clean, a estética algo futurista, a música feita com geométrico rigor de compasso. No entanto, e ao mesmo tempo, há no disco uma aura de estranheza que dificilmente consegui explicar em toda a minha vida. Desde miúdo, por exemplo, que os versos «It took seconds of your time to take his life / It took seconds» (do tema «Seconds») me soavam misteriosos, e só muito mais tarde vim a descobrir que se referiam à trágica morte do presidente John F. Kennedy. Ainda assim o que marca verdadeiramente este Dare! é o seu som pop dançante e as suas intemporais canções como «The Things The Dreams Are Made of», «Open Your Heart» e «Don’t You Want Me». Imperdível!
6) Orchestral Manoeuvres In The Dark – Architecture & Morality (1981)
Houve um tempo em que os artistas evoluíam de disco para disco de forma verdadeiramente desconcertante. Os Orchestral Manoeuvres In The Dark foram bem o exemplo disso. Começaram com um disco de garage synth pop (o seu álbum homónimo), evoluíram para um formato ambiental e de cariz gótico e denso (Organisation), até desaguarem em Architecture & Morality, terceiro disco que se revelou o verdadeiro statement da banda de Wirral, Reino Unido. Vendeu mais de 4 milhões de cópias e foi, ao mesmo tempo, um sucesso junto da crítica. Canções como «Souvenir», «Joan of Arc» e «Joan of Arc (Maid of Orleans)» tornaram-se famosas em todo o mundo. O disco, no seu todo, é de uma coerência absoluta e é um dos melhores discos eletrónicos desse período dos eighties, hoje tão pouco entendido por tanta gente bem pensante. Não envelheceu, não tem sequer uma ruga de expressão musical. Continua firme e de cabeça bem levantada, estátua esculpida com um rigor quase renascentista. É um objeto de culto para muitos melómanos, e eu tenho por este trabalho o maior dos apreços. Ainda hoje, quando nada de objetivo me apetece ouvir, mas o impulso me leva a escolher um qualquer disco para o colocar a girar, Architecture & Morality é muitas vezes a escolha mais acertada. Não há como correr mal. É perfeito e tem a medida exata dos meus gostos.
7) Marillion – Misplaced Childhood (1985)
Misplaced Childhood representou o triunfo do neo-prog nos anos 80. O disco arrasou completamente, instalando-se nas tabelas dos álbuns mais vendidos durante bastante tempo. Ao que parece, o conceito do projeto terá surgido após uma «viagem» de Fish (o vocalista dos primeiros tempos do grupo) que demorou cerca de dez horas, após ter ingerido uma dose considerável de LSD. Proveitoso «passeio», portanto. Originalmente, o disco deveria ter apenas duas longas faixas, uma em cada lado do LP, mas essa intenção foi deixada de parte, talvez pelo facto de essa particularidade poder vir a prejudicar a publicitação do trabalho nas rádios da altura. Canções como «Kayleigh», «Lavender», «Heart of Lothian» e «Pseudo Sil Kimono» fizeram de Misplaced Childhood um marco histórico no percurso da banda. A voz de Fish é um instrumento incomparável e fundamental para que o meu apreço por este Misplaced Childhood se tenha verificado desde o seu lançamento. A capa, iconicamente naïf, mostra uma criança (Robert Mead, vizinho de Mark Wilkinson, o autor do projeto gráfico) com uma gazza ladra no seu punho. Ao redor do rapaz, junto aos seus pés, um anel e uma papoila robusta e aberta. Nuvens e arco-íris por trás. Tudo repleto do típico simbolismo prog rock, muito marcante na identificação visual da banda, como se pode perceber ao olhar para algumas das capas de outros dos seus trabalhos.
8) Billy Bragg – Talking with the Taxman About Poetry (1986)
Billy Bragg é um herói no universo da música produzida no Reino Unido, um autêntico working class hero ao serviço de uma humanidade melhor e mais justa. Independentemente de se gostar ou não das suas nítidas opções políticas, a verdade é que o homem que um dia gravou uma canção como «The Milkman of Human Kindness» (primeira canção de Life’s a Riot with Spy vs Spy, primeiro disco do músico de Essex) tem de ser tratado com o máximo respeito. Tenho-lhe uma infinita gratidão por todos os discos que nos deu, particularmente por este Talking with the Taxman About Poetry. Só o título já é um autêntico achado! Se a isso somarmos a capa (onde vem, por um acaso que serve perfeitamente o propósito deste texto, a inscrição «the difficult third album»), e todas as canções que dele fazem parte, perceberão melhor as razões da minha escolha. Vejamos: «Greetings to the New Brunette», «The Marriage», «Ideology», «Levi Stubbs’ Tears», «There Is Power in a Union», «Help Save The Youth Of America», ou ainda «Wishing the Days Away», «The Passion», «The Warmest Room», são canções que existem como se fossem hinos, violentamente certeiros nos propósitos que encerram. Depois há aquela guitarra crua e deliciosa, o accent típico de Bragg, o génio que perdura nas canções, no disco, e nele próprio há mais de 30 anos. Imprescindível!
9) Primal Scream – Screamadelica (1991)
Deve haver ainda muita gente convencida de que Screamadelica é onde tudo começou para os Primal Scream. Estarão enganados, sobretudo por este ser o seu terceiro longa duração. No entanto, on the other hand, absolutamente certos, uma vez que é este o disco que faz deles uma banda verdadeiramente importante e com lugar garantido na história da música no século XX. Li algures, há muito tempo, que este terá sido um dos álbuns produzidos com maior quantidade de drogas à mistura, e esse facto não é de admirar quando o ouvimos. Todo o disco é uma alucinação, um encantamento sublime, um delírio «ecstasiano» feito para abrir as mentes de todos os seus ouvintes. Apesar de muitos considerarem Screamadelica um disco de dança, uma boa parte dele é calmo, de uma tranquilidade absoluta, uma espécie de céu divinamente estrelado e acolhedor. Highs and lows, como o efeito da droga que esteve na base da sua feitura… Um dos meus maiores desgostos em termos de concertos é não os ter visto nos shows da digressão do disco. Nem quando saiu, nem mesmo quando da tour de comemoração dos 20 anos do seu lançamento. Como foi isso possível? Não sei, e é melhor desviar a ideia dessa trágica realidade. Ouvir canções como «Movin’ On Up» ou «Loaded», que em muito redefiniram o percurso musical da banda, continua a ser uma festa para os sentidos, estejam eles afetados por certas substâncias menos próprias ou num estado de pureza imaculada. Aquele fundo encarnado e aquele sol pincelado de olhos grandes estará para sempre tatuado no meu imaginário musical.
10) Radiohead – OK Computer (1997)
Para muitos, este foi um dos últimos grandes discos do século passado. Para mim também. Os Radiohead passaram de um modo indie para outro patamar difícil de classificar. Há até quem considere OK Computer um álbum prog, na sua essência. Além das classificações possíveis, o que interessa é dizer que este terceiro trabalho de Thom Yorke e companhia mostrou uma outra face musical da banda, até então perfeitamente desconhecida. Por entre ruídos e paisagens sonoras deslumbrantes moram canções de finíssima estampa, melodiosas e algo experimentais ao mesmo tempo. Os casos de «Karma Police» e de «No Surprises» são bem emblemáticos do que digo. Mas há ainda «Exit Music (For a Film)» e «Paranoid Android», por exemplo, que fazem deste OK Computer uma festa para os nossos sentidos. Destaco, finalmente, a canção «Lucky» por ter sido importantíssima para a feitura de todo o disco. A pedido de Brian Eno, durante a tour de The Bends, a banda gravou uma canção para um álbum de cariz humanitário. A canção foi a anteriormente referida, que veio a dar o tom certo para a gravação de OK Computer. Na verdade, e a partir daí, os Radiohead não pararam de surpreender o seu público, e nos passos seguintes voltaram a mudar de rumo. Fizeram-no sempre de forma competente e dedicada, sendo Kid A, na minha opinião, outro disco de exceção, no entanto nunca mais igualaram esse seu «difficult third album» que lhes conferiu, aliás, a entrada numa escala planetária de quase divinização. O que mais me agrada no disco é o seu sentido melancólico, enfatizando uma linguagem atmosférica de enorme sensibilidade. Tudo isso sem alarmes nem surpresas.
Pronto! Eis-nos chegados ao fim de mais um texto. Gostaria agora que o leitor se lançasse numa pessoalíssima discussão interna sobre tudo isto e que chegasse por si mesmo às conclusões que certamente surgirão sobre este assunto. Ou que, então, descobrindo aqui atalhos para o conhecimento de alguns dos discos mencionados, partisse à aventura de os descobrir. É isso que importa. Isso, e a música. Sempre!
* nota final de rodapé: foi dura, a escolha, e fica sempre um certo sabor amargo por alguns discos que ficaram fora desta lista. Assim, bubbling under, ficaram estes três maravilhosos álbuns que não quereria deixar de mencionar: Kate Bush, Never For Ever (1980); New Musik, Warp (1982); Cornershop, When I Was Born for the Seventh Time (1997). Agora, sim, fico menos angustiado.