No passado mais recente tem sido sempre assim. A cada ano que avança, um novo disco dos of Montreal é dado a conhecer ao mundo. Não tem falhado, e este ano volta a ser essa a regra vigente. Em pleno verão, a banda de Kevin Barnes volta ao ataque com mais um longa duração e com novos argumentos sonoros na bagagem. São 12, ao todo, os temas que dão corpo a Innocence Reaches. Depois dos fabulosos Lousy with Sylvianbriar (2013) e Aureate Gloom (2015), o que esperar de mais um disco dos hiperativos americanos de Athens, Georgia? A resposta será sempre a mesma, suponho: tudo, ou melhor, mais uma torrencial e deliciosa amálgama de sons e estilos que fazem parte da sua identidade artística. Sim, é disso que se trata, mais uma vez, embora com uma ou outra interessante nuance digna de registo, o que mostra alguma derivação em relação aos seus dois últimos discos, que por aqui foram bem ouvidos e muito bem considerados.
Innocence Reaches começa por nos colocar uma questão: “How do you identify?”. É este o verso inicial da primeira canção do álbum, e não será inocente a escolha do tema de abertura, até porque “Let’s Relate” (é esse o seu título) opera uma mudança instrumental em relação àquilo a que os of Montreal nos vinham, recentemente, habituando. Teclas, sintetizadores, voz robótica, eletrónica descarada a lembrar décadas passadas. O mesmo acontece no segundo tema (“It’s Different For Girls”, que volta a lidar com a questão inicial do álbum), e é impossível não nos vir à cabeça a banda de Marc Almond e David Ball, os Soft Cell, que no início dos anos 80 davam cartas na new wave synthpopiana que rebentava estrondosamente por essa altura. Mas, no entanto, como é dos of Montreal que falamos, o rumo do álbum vira de forma radical ao terceiro tema (“Gratuitous Abysses”) para um rock cheio de glam, ao melhor estilo de David Bowie (alguma espécie de homenagem?) dos anos de Hunky Dory e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars. Depois, ao quarto tema, o melhor do disco. Chama-se “My Fair Lady” e é uma lindíssima e confessional canção. “Because you’ve been so damaged, / I have to give all the love that was meant for you to somebody else / Because you’ve been so abused, / I have to give all the love that was meant for you to some other girl” são os versos que nos ficam no ouvido, terminando a canção com a repetição de “Can’t you change? (a identificação, mais uma vez, embora aqui pela mudança pretendida por quem discursa)”, numa melodia que irradia beleza e tristeza, ao mesmo tempo. Segue-se o rock sujo de “Les Chants de Maldoror”, outro grande momento do álbum, referência óbvia à fantasiosa epopeia de Comte de Lautréamont (pseudónimo de Isidore Lucien Ducasse) e à malévola personagem Maldoror. “A Sport And a Pastime” parece-me uma canção sem grande consequência, e logo chegamos a “Ambassador Bridge”, tema tenso, que vai pairando no ar, ameaçador, até assentar definitivamente ao fim de duas ou três audições. Bonito tema, sem dúvida. Surgem, em seguida, “Def Pacts” e “Chaos Arppegiating”, canções que cumprem sem se meterem em bicos de pés, assim como as restantes “Nursing Slopes”, “Trashed Exes” e a final “Chap Pilot”.
Innocence Reaches é tudo isto, portanto. Mas como se trata de um disco dos of Montreal, é bem capaz de ser mais do que tudo isto, uma vez que estes americanos nunca nos entregam coisas fáceis aos ouvidos, e por isso o tempo prolongado de audição irá, seguramente, aclarando intenções e ideias. Trata-se de um disco que tem o ser feminino em óbvia evidência, algo que se nota até pela espampanante capa, outra das imagens de marca da banda, em que várias mulheres surgem desenhadas. Mulheres, seios, aparelho reprodutivo, vagina. Innocence Reaches não será o melhor álbum dos of Montreal, mas é um valor seguro. Disso ninguém terá grandes dúvidas. Até porque é, também essa, a sua identidade.