A minha mulher não era apenas minha mulher. Explico melhor: era muito dada, muito amiga do próximo, como se o outro, qualquer um que fosse, fizesse brotar dela uma natural e forte força empática, um curioso e definitivo desejo de proximidade. Dizia, nessa altura, à falta de melhor expressão, que a minha mulher queria o bem estar de todos e que, provavelmente, não haveria no mundo pessoa mais altruísta do que ela.
De início, confesso, sentia-me honrado por ter ao meu lado uma mulher com aquelas características. E assim foi durante muito tempo, quase duas décadas desse enamoramento particular por quem vivia ao nosso redor, fossem amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou simples pessoas com quem nos cruzávamos na vida, homens ou mulheres de qualquer idade. Antes mesmo de nos casarmos, naqueles anteriores e breves meses de namoro, eu já havia percebido essa sua particular inclinação. Verdade seja dita que se o seu comportamento para com terceiros era da forma como o descrevi, comigo era exatamente o mesmo, elevado quase ao extremo do afeto e do amor. Sentia-me adorado, idolatrado até. Sentia-me a viver no paraíso, sabendo que a sorte que tinha teria de ser cuidada, não fosse, um dia, as coisas passarem a ser de outro modo. Mesmo consciente disso, ter-me-ei descuidado, deitando tudo a perder.
Eu vivia da escrita, naquele tempo. Era autor de contos e de poemas, coisa que a minha mulher sempre entendeu como natural, uma vez que era leitora assídua dos meus textos (a primeira leitora, sempre), assim como de tantas e tantas obras que devorava por meu conselho ou sugestão. Eu escrevia alguns poemas que, no fundo, eram sobre ela, e ela sabia disso perfeitamente. Lembro-me de uns versos que lhe dediquei e que ela, por simpatia e também por gostar muito deles, de vez em quando segredava-os aos meus ouvidos, e que remetiam, na sua poética tão simples e tão caseira, para o casal que éramos e que queríamos ser para sempre, passassem os anos que tivessem de passar. Embora hoje me cause angústia recordar esses momentos murmurados com a boca dela colada ao meu rosto, os versos diziam mais ou menos assim, se a memória não me atraiçoa: “quando eu for velho / quando eu for velhinho / bem velhinho / como seremos / como serei / como será?”. Hoje, sei que a vida nos prega partidas tremendas e que, por vezes, somos cilindrados pelo peso das desventuras do mundo. Do nosso pequeno mundo, bem se vê, mas também do outro, que em silêncio parece entreter-se com as nossas futuras desgraças.
A nossa diferença de idades rondava os 24 anos. Eu mais velho, ela bem mais jovem. A minha paixão por ela nada teve a ver com essa discrepância etária. Sempre pensei ser natural que os homens piscassem os olhos a raparigas mais novas, mas esses 24 anos eram também a idade dela quando nos conhecemos. Portanto, já não era tão nova assim e os seus modos e forma de pensar em nada se confundiam com o seu ar de eterna adolescente. Ponderei muito sobre aquela desejada união, antes do coração decidir que nada mais haveria a fazer. Teríamos de casar, mais cedo ou mais tarde.
Ela andava radiante, assim como eu. Tudo aconteceu de forma rápida. Papéis assinados e casa nova num ápice. A vida foi-nos projetando muitos motivos de contentamento. A ideia de podermos ter filhos nunca nos passou pela cabeça, e ainda bem que assim foi. A nossa vida de casal foi tórrida, muito física, como todas serão de início, julgo eu. Mas o inverno das vidas não obedece às nossas vontades, como bem sabemos, e o meu estava bem mais ao virar da esquina do que o dela. Quando certas pessoas se deparavam connosco, logo após nos juntarmos, deixavam escapar dos seus rostos a perplexidade típica de não saberem bem se eram pai e filha quem tinham perante os olhos, ou se de marido e mulher. No entanto, e a bem da verdade, a minha mulher, embora tivesse idade e corpo para poder ser julgada como um rebento meu de uma qualquer anterior relação, era tão afetuosa comigo, tão protetora e cuidadosa, que via nela a mãe que nunca quis ser, e eu uma espécie de improvável e pecaminoso filho tardio.
Os dias passavam sem grandes desassossegos, e hoje, pensando neles, recordo que também sem grande história ou enredo digno de menção. Não fossem os primeiros anos passados entre lençóis, sequiosos do que tínhamos para dar um ao outro, os anos que passámos juntos foram-se tornando cinzentos, foram perdendo o brilho, páginas viradas ao acaso de um qualquer romance sem interesse. Tornaram-se rotineiros. Eu via nessa rotina o rumo natural da vida, e nunca pensei muito nisso, nem nas suas eventuais consequências. Para que serviria questionar aquilo que percebíamos estar a escapar-nos pelo meio dos dedos, quando nos sentimos incapazes de arranjar melhor solução? O meu bichinho bonito continuava belo, mas pouco meu, sei-o agora melhor do que nunca.
Pesam, estas linhas. Pesam estas palavras que deixo nestas folhas de papel. Nem sei bem por que as escrevo, uma vez que não lhes encontro qualquer valor ou importância. Muito me pesou o dia em que, ao acordar, tateei o seu corpo na cama, encontrando apenas os moldes da sua ausência e os seus cheiros perdidos nos lençóis e nas almofadas que sempre gostou de abraçar. Tinha partido, mas eu ainda não o sabia. Julguei-a na cozinha, a preparar o pequeno almoço, ou a tomar o banho que a prepararia para mais um dia. Mas não. Não estava em casa. Havia apenas deixado um pequeno papel de despedida, dobrado em quatro, com vincos de precisão e esmero. Nele, uma simples expressão escrita, reveladora da vontade que a fez partir: “porque Deus quer”. Demorei um pouco a digerir aquele momento, olhando pela janela da sala para uma cidade que me perecia não existir, toldada pela névoa que crescia em mim.
Passaram alguns anos sobre esse dia. Sete, para ser exato. A minha mulher, e eu sabia isso desde os primeiros momentos em que vivi na sua companhia, nunca foi tão minha assim.
* este pequeno conto foi escrito de rajada, quase sem emendas, depois de ter lido alguns contos do livro Vivo Muito Vivo: 15 contos inspirados nas canções de Caetano Veloso, organizado por Mateus Baldi, a propósito das comemorações dos 80 anos de vida do famoso músico brasileiro, e publicado neste ano de 2022. A canção de Caetano Veloso que livremente inspirou a escrita deste conto é “Minha Mulher”, que abre o disco Jóia, de 1975.