Estamos em 1983, na mágica América. A comunidade do metal está então dividida entre o açúcar do glam (Motley Crue, Poison, Bon Jovi…) e a bílis do underground (Metallica, Slayer, Anthrax…). Tudo os distingue: música, aparência, geografias, visão do mundo.
Os primeiros são obcecados com a imagem, maquilhando-se, fazendo penteados tontos, usando calças de embaraçosa licra. A sua religião é o prazer; a sua ideologia, o escapismo; a sua nobre missão: comer o máximo de groupies por unidade de tempo. Em consonância, fazem um metal meloso e inofensivo, com discos no top e vídeos parvos na MTV. As miúdas adoram as suas baladinhas de amor; e os miúdos… vão atrás das miúdas. Se o hair metal acontece um pouco por todo o lado, a capital é a soalheira Los Angeles, e Sunset Strip, o seu fútil quartel-general.
Já a malta do thrash odeia o mainstream com todas as suas forças, refugiando-se em habitats escuros e subterrâneos. Acham os tipos do glam uns vendidos, e umas prima donnas, e têm toda a razão. Não ligam muito à imagem, a não ser no seu esforço – notavelmente bem conseguido- para parecerem feios e maus. A música é rápida, agressiva e sem concessões. A sua ideologia é a raiva informe e difusa, contra tudo e contra todos. A capital do thrash é San Francisco. Sobretudo por uma razão: não fica em L.A.
Ora quem, por toda a década de oitenta, liderou este movimento underground do metal, desbravando o caminho, e elevando continuamente a fasquia, foi uma banda chamada Metallica. Dessa febre criativa, nasceram cinco álbuns perfeitos, cuja obra-prima foi o Master of Puppets. Mas o pontapé de saída, o poderoso e apunkalhado Kill ‘Em All, foi o mais inovador e influente de todos: tão revolucionário na sua velocidade, e tão intransigente na sua brutalidade, que redefiniu por completo as regras do jogo do metal. Entretanto, o género evoluiu para patamares absurdamente extremos; mas, ainda assim, a mais indigesta banda de death metal dos nossos dias deve tudo a Kill ‘Em All. É este álbum que traça a fronteira entre o metal clássico da velha guarda e o metal extremo da modernidade. Antes dele, os Iron Maiden eram durões; depois dele, passaram a ser umas meninas.
Claro que haverá sempre a polémica se realmente Kill’Em All foi ou não o primeiro disco de thrash metal, muitos atribuindo o feito ao primeiro álbum dos britânicos Venom. Confesso que esta controvérsia não me interessa muito. Qualquer que seja o veredicto, Kill’Em All será sempre uma obra maior e mais influente do que Welcome to Hell. Muitos milhões de anos-luz acima.
O que não quer dizer que Kill’Em All tenha nascido do nada, como que por geração espontânea. Lars Ulrich e James Hetfield eram doentiamente obcecados pelo metal que vinha do Reino Unido, consumindo toneladas de discos importados. A velocidade dos Motorhead, os riffs dos Diamond Head, a energia dos Iron Maiden, a perversidade dos Venom, tudo isso entrou na fermentação do novo som.
A própria cena de hardcore americana -Black Flag, Dead Kennedys e demais punkalhada – teve o seu papel, sobretudo devido à sua alucinante velocidade. Mas estas bandas eram muito toscas tecnicamente, orgulhando-se, aliás, disso. Quando ouvimos temas como “Whiplash” ou “Metal Militia”, não nos impressiona só a furiosa velocidade (já a conhecíamos do hardcore), nem apenas o avassalador peso (já o conhecíamos dos Venom). O que mais nos assombra é a essas duas qualidades se aliar uma terceira: a precisão maquinal daqueles riffs. Ao escutarmos o disco pela primeira vez, perguntamo-nos, estupefactos: como é possível, àquela estonteante velocidade, manter sempre aquela sobre-humana exactidão? É aqui que está a essência de Kill’Em All. A tríade rápido-pesado-e-preciso foi inteiramente inventada por este álbum. É esse o seu gigantesco legado.
Quando se fala da velocidade de Kill’Em All, e do metal no geral, há um risco evidente, que é o de fetichizarmos a rapidez, como se ela fosse um fim estético em si mesmo, traduzido na fórmula: quanto mais rápido melhor, ganha aquele que conseguir mais batidas por minuto. Se assim o fosse, não precisaríamos de críticos musicais para nada, bastaria o raio de um conta-quilómetros. Ora, é aqui que eu acho que os Metallica se sobressaem em relação a outras bandas thrash. Em KEA, a velocidade nunca é gratuita, porque os riffs e melodias de base seriam interessantes em qualquer tempo. É um pouco como o álcool, que apenas acentua os traços de personalidade que já estão latentes em estado sóbrio. Os tempos rápidos de Kill’Em All potenciam o poder expressivo dos seus riffs (enfatizando toda a raiva pós-adolescente que querem exprimir) apenas e somente porque os riffs de raiz já são tremendos. Nem trezentas batidas por minuto conseguiriam alguma vez salvar um riff aborrecido; e, antes dos anos 90, os Metallica não sabiam ainda o que era isso…
Por outro lado, a banda de San Francisco sabe trabalhar a dinâmica de uma canção, de modo a que ela pareça mais veloz. Os assomos de velocidade em Kill’Em All são sempre precedidos por breves introduções lentas, para que o contraste crie uma ilusão de maior rapidez.
Sendo o álbum mais punk dos Metallica, é natural que seja também o mais “curto e grosso”, com poucos elementos progressivos. No entanto, eles já estão presentes, aqui e acolá, e é significativo que o melhor tema do disco, o clássico “The Four Horsemen”, seja o que tem uma estrutura mais complexa, cheia de variações melódicas e rítmicas. A articulação entre música e letra é brilhante, com a guitarra-ritmo e o duplo bombo da bateria a emular na perfeição o trotear dos quatro cavalos.
Não poderíamos acabar este texto sem falarmos de “(Anesthesia) Pulling Teeth”, a icónica canção-solo de Cliff Burton. A forma heterodoxa como ele ataca o baixo, tocando-o como se fosse uma guitarra; a sua inspiração erudita e barroca, como se em pequeno tivesse jogado à bola com Bach; e o espectro da sua morte sempre presente, tão estúpida e tão precoce, faz-me sempre estremecer quando James Hetfield anuncia: “bass solo, take one”. Se este grande disco grita, a plenos pulmões, “matem-nos todos!”, o remetente eram só os canalhas que governam o mundo, não tu, doce Cliff, íntegro até à medula, metaleiro hippie, anjo caído demasiado cedo…