Foi bonita e comovente, a festa. O lendário octogenário da Vila Isabel ainda está capaz de fazer um festão! Viva Martinho da Vila!
Foi um regresso aos tempos de jovem. Nessa altura, conheci um disco, em casa dos meus tios, que me fascinou completamente. Sempre que podia, colocava-o na aparelhagem Grundig (salvo melhor memória) e era um deleite ouvir todas aquelas faixas, alinhadas nos dois lados da rodela negra. A capa, algo tosca e nem sempre bem desenhada, era igualmente fascinante. Durante muitas décadas, esse mítico álbum esteve ausente da minha vida. Era difícil encontrá-lo, até que um CD de Canta Canta, Minha Gente (1974) cruzou-se com o meu caminho. Ótimo! Revia nele e nas suas canções, um tempo saudoso e bom, marcado pela memória sambada das peripécias da juventude. Bem mais tarde, quando os adultos se aproximam perigosamente da idade seguinte, chegou-me às mãos, depois de longa procura, a edição em vinil do mesmo disco. O prazer, nessa circunstância, foi supremo. Mas faltava ainda um último regalo. Aconteceu ontem, em plenas Portas de Santo Antão, no mágico Coliseu de tantos e tantos recreios da minha vida. Havia chegado a vez de ver Martinho da Vila ao vivo! Estava cumprido um ciclo, uma história em várias etapas, um sonho nunca verdadeiramente assumido, sobretudo pela crença de que já seria demasiadamente tarde para o concretizar. Engano meu. Ainda bem.
O grande mestre da distinta Vila Isabel está exatamente com a voz que conheci há mais de quatro décadas. É claro que a idade passou por ambos (eu estou incluído nesse plural), mas a música tem coisas assim: as canções tão bem conhecidas por mim parecem novas, a estrear. Martinho já se senta, por vezes, quando a música convida à exaltação do corpo. Mas o encanto de “Renascer das Cinzas”, “Segure Tudo” e “Disritmia”, por exemplo, fazem esquecer tudo e são uma espécie de corrente de ar de nostalgia boa e pura. Aquece a alma, essa brisa fresca do samba malandro de Martinho da Vila. E a gente toda, aposto, dançou por dentro das memórias de ouvi-lo uma vida inteira.
Mart’nália, uma das filhas artistas de Martinho, partilhou o palco com o pai, e aquela dupla de sangue arrasou, pois então. Combinam as vozes, o jeito, o samba que lhes está no sangue. Depois, sozinha em palco, cantou a bonita “Onde Anda Você”, ao mesmo tempo romântica e triste, perdida “na noite, nos bares / Onde anda você”. Foi também bonito ouvir “Estácio, Holy Estácio”, do gigante Luís Melodia. Cinco canções seguidas para que o pai pudesse descansar, terminando com as contagiantes “Cabide” e “Água de Chuva no Mar”. Amor de filha no palco do Coliseu! Na verdade, ainda cantaram, pai e filha, “Ciranda de Roda”, um sambão daqueles de ressuscitar defuntos convictos!
Martinho pediu “licença para transformar um fado num sambinha” e cantou “Lisboa, Menina e Moça”. Deu-se, por essa altura, um abraço transatlântico sentido e poético que marcou a noite. Afinal, fado e samba podem vestir o mesmo fato musical, que conforto e beleza ficam sempre bem lado a lado. Mas não se ficou por aí: a “Rosinha dos Limões” também entrou em palco, desfilando elegante como sempre, agora com um sotaque de jeito ainda mais gingão e namoradeiro.
“Devagar, Devagarinho” foi lindo, mas tudo teria de se conjugar para o final perfeito com as icónicas “Canta Canta, Minha Gente”, “Mulheres” e “Madalena do Jucu”. Martinho da Vila deu o que podia e por isso estamos agradecidos ao grande mestre do samba carioca das últimas décadas. Se é certo que Martinho é da Vila, ele extrapola todos os lugares, é do mundo e do meu muito particular universo de memórias e afetos musicais. Ao regressar a casa, misturei (quase cambaleante) passos jovens com passadas adultas. Segui firme com a certeza de que passado e presente “são só dois lados da mesma viagem”, como cantou um outro génio da música popular brasileira. A noite, no entanto, foi de samba, de alegria, deixando “a tristeza pra lá”. Um autêntico “porre” de “boemia”!