Confesso que só cheguei a esta banda sonora um pouco tardiamente, até porque que o filme, visto e revisto várias vezes ao longo de tantos anos, era a obra que me fascinava e fascina até hoje. Só algum tempo depois, e de forma algo tímida, fui dando espaço ao prazer de ouvir as 10 peças que Martial Solal criou para as imagens de génio de Godard. Ouvir sem ouvir e ver ao mesmo tempo é sempre um enorme desafio, mas por vezes a surpresa que daí deriva é suficiente para que os sons que antes embalavam as imagens, possam depois viver isoladamente e com um sentido muito próprio. Gosto de ouvir A Bout De Souffle como gosto de ouvir um outro qualquer disco de jazz, por exemplo, embora não seja apenas jazz aquilo que por aqui se ouve. Assim, depois de ter introduzido este disco na minha vida, apenas me arrependo de não lhe ter dado a devida importância há mais tempo. Como fiz com o filme, aliás. Agora, que tenho o duplo prazer de poder lidar com A Bout De Souffle da forma que melhor entender, chegou a hora de partilhar convosco algumas breves ideias a propósito. Vamos a isso, então.
A propósito deste primeiro longa duração de Jean-Luc Godard, o The New York Times disse ser “a pop artefact and a daring work of heart”, e essa mesma nota poderá servir, com um ou outro ajuste de linguagem, à banda sonora que Martial Solal engendrou para a estreia de Jean-Paul Belmondo nos écrans, ao lado da belíssima Jean Seberg. No que diz respeito aos 10 temas que compõem A Bout De Souffle, cabe-me dizer que todos eles são variações sobre algumas construções sonoras que vamos escutando em permanência, conferindo, assim, uma notável unidade de conjunto a toda a obra. O jazz predomina, obviamente, e os sopros de Roger Guerin (trompete) e Pierre Gossez (sax alto) vão tomando as rédeas em algumas das faixas. Noutras, o que sobressai é o vibrafone de Michel Hausser, e a linha sonora que dele sai dificilmente a esquecemos, de tão delicada e bonita. A somar a tudo isto, o génio de Solal! A brilhante construção que nos deixou acrescenta qualidade à qualidade do filme, e por isso tem vida própria quando afastada das imagens do realizador. É o próprio Martial Solal quem nos disse, referindo-se à música que criou para A Bout De Souffle: “Godard deliberately destroys any form of classical construction. In music I haven’t gone as far as Godard: I’ve always tried to move forwards keeping a certain legibility. At same time, it’s true, we share the same anti-academic approach.”
A banda sonora socorre-se, obviamente, dos vários momentos do filme para os destacar, e por vezes há uma certa nuance dramática em “La Mort”, “L’Amour, La Mort” e em “Thème D’Amour”, por exemplo, que não nos deixam indiferentes. Noutras composições é o jazz mais puro que impera, como em “Dixieland” ou em “Duo”, mas a verdade é que em todas, nas referidas e nas restantes, sobressai a enorme qualidade composicional que Martial Solal soube trazer para a nouvelle vague godariana. Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), esse criminoso sem destino e sem propósito, e a sua namorada americana Patricia Franchini (Jean Seberg) são os protagonistas do filme, como bem sabemos. Mas, fora dele, Martial Solal merece o enorme destaque que estas linhas lhe pretendem atribuir. Ouvir A Bout De Souffle ainda hoje me encanta com o mesmo grau de surpresa da primeira vez. É um trabalho pop jazzístico, que me faz sonhar com um tempo que eu, particularmente, gostaria de ter vivido. Um tempo novo, moderno e libertador. Assim, como por encantamento, vivo a nostalgia de um tempo que não conheci quando ouço A Bout De Souffle. E esse é um prazer imprescindível!