O Altamont entrevistou Alceu Valença, músico, poeta e cineasta que nos próximos dias se apresenta em Lisboa e Porto para nos mostrar o show Vivo! Revivo!
O dia estava marcado e as horas corriam em direção ao tão esperado encontro. Uma entrevista com Alceu Valença não se consegue facilmente, e o momento aproximava-se a passos largos. Desde logo se percebeu, quando Yanê Montenegro, a esposa do músico, nos abriu as portas de sua casa, que a conversa com Alceu ia ter tanto de prazerosa como de única. A razão é simples: sentimo-nos imediatamente em casa, tal a simpatia e a disponibilidade do casal, não tanto como profissionais, mas antes como amigos que resolveram visitar o músico e a sua mulher na sua belíssima casa situada paredes meias com o Castelo de São Jorge.
Sobre Alceu Valença já todos sabemos há muito tratar-se de uma autêntica força da natureza. Figura viva, irrequieta, capaz de risos que se ouvem nos quilómetros mais próximos do local onde esteja, o músico de São Bento do Una falou connosco durante hora e meia. Falou sem parar. Falou com um brilho nos olhos que não se apaga nunca. Falou com o prazer de comunicar, sem rodeios, sem cerimónias, como só os seres maiores sabem e podem fazer. Falou o homem e falou o artista, unidos numa mesma e única dimensão. Falou, em resumo, sobre a sua arte: “Artista que se expressa com alma é uma maravilha. Artista que se apresenta sem alma é entretenimento, e entretenimento é uma merda.”
Arrancou rumo ao passado, quando o avô lhe garantiu um dia, num momento caseiro festivo em que se ouvia música e cada membro da família cantava, dançava, marcava o ritmo com as palmas das mãos, que o neto nunca seria músico porque lhe faltava coordenação rítmica. Talvez um pouco por razões parecidas com a que o seu avô avançou naquele distante dia, Alceu Valença nunca pensou ser músico, e só começou a ponderar essa hipótese bem mais tarde. Nem sequer era, para ele, coisa de grande interesse, isso de ouvir música de forma atenta e dedicada, o que aliás ainda o caracteriza hoje em dia. Garantiu-nos que nunca ouve música, conhece pouco ou nada do que nessa arte vai acontecendo à sua volta, tanto no Brasil como no mundo inteiro. Contou-nos sobre o fascínio antigo que o cinema sempre exerceu sobre ele, e de como o filme À Bout de Souffle (O Acossado, de Jean-Luc Godard) o influenciou tão positivamente, sobretudo do ponto de vista da sua autoestima, que era precária na altura. Julgava-se feio. Descobriu, no entanto, que era muito parecido com o galã Jean-Paul Belmondo, o protagonista masculino do filme que marcou o início da nouvelle vague, e desde esse momento em diante “começou a chover gatas em minha vida”. Depois, em vários momentos de risada total, imitou nomes históricos da música popular brasileira como Dalma de Oliveira, Cauby Peixoto, Sílvio Caldas, entre outros.
Saltando e recuando na linha do tempo (para Alceu “passado, presente e futuro é tudo uma coisa só”) o cantor de “Tropicana” narrou-nos episódios do tempo em que fez estágio em advocacia, depois como jornalista, entrou no espaço escuro da dura ditadura militar que durou quase duas décadas no Brasil, bem como foi dando nota das suas passagens pelos Estados Unidos e França, até regressar de novo ao país natal. E assim, empurrado por uma vontade que foi mais da vida do que propriamente sua, acabou entrando na história da música popular brasileira.
Alceu Valença passeou por quase todos os seus discos durante a nossa conversa, parando mais demoradamente naqueles que estão na base do espetáculo que agora traz a Portugal. Sem nostalgias postiças, o show revive integralmente um dos seus mais importantes momentos ao vivo da sua carreira, juntando canções dos discos Molhado de Suor, Vivo! e Espelho Cristalino, todos da década de 70. O disco Vivo! é verdadeiramente histórico (bem como os outros referidos, aliás) e o músico garantiu-nos que fará, num primeiro momento do espetáculo, uma transposição total desse concerto de 1976, em que até a roupa com que se apresenta é a mesma, a original. Depois, num segundo momento do show Vivo! Revivo!, o músico apresentará alguns dos sucessos da sua carreira, até porque temas como “Cabelo no Pente”, “Tropicana”, “Anunciação”, “Belle de Jour”, “Ladeiras”, “Coração Bobo” ou “Girassol” não poderão nunca faltar ao alinhamento de um concerto tão especial como este.
Alceu Valença sempre foi um autodidata, tanto na música como no cinema. Em relação à sétima arte, Alceu contou-nos a longa odisseia que foi realizar o seu filme A Luneta do Tempo, obra a que se dedicou totalmente durante bastante tempo, “fazendo rigorosamente de tudo”, desde a escrita do guião, escolha de locais de filmagem, escolha de atores, direção de atores, trilha sonora, e tudo o que mais se possa imaginar. Para quem nunca cursou cinema, a estreia nas telas não poderia ter corrido melhor, uma vez que A Luneta do Tempo tem ganho inúmeros prémios e elogios vários por todo o mundo. Na música como no cinema, Alceu permanece o mesmo: único e íntegro, apenas fiel às sua ideias, sem facilitismos nem cedências. Ninguém se parece com ele, com o seu trabalho, com a forma de entender a sua arte. Confidenciou-nos, lendo e interpretando partes significativas de um guião que está em marcha e que está escrito no seu telemóvel, que fará um novo filme nos tempos mais próximos. À pergunta sobre o título da sua segunda longa metragem, hesitou, e no momento avançou com a possibilidade de vir a chamar-se Final Feliz, mas instantes depois, olhando profundamente nos olhos do entrevistador como se tivesse acabado de fazer uma grande descoberta, disse que “afinal o título não pode ser esse, porque o final talvez não seja tão feliz assim”. Será, isso garante, uma obra em que coabitam ficção e reportagem. Contou-nos partes importantes da história do seu futuro “longa”, que nós, por uma questão de cortesia, não revelaremos neste texto.
Hora e meia depois, e muito a custo (ficaríamos lá outros tantos minutos) terminámos a entrevista, que na verdade foi tudo menos isso. Foi, antes de qualquer outra coisa, uma conversa entre amigos que nunca se tinham encontrado antes. Houve autógrafos, selfies, fotos para memória futura, troca de mails pessoais, abraços, convites para nos encontrarmos com ele na sua casa de Olinda, local com presença forte na vida e na obra de Alceu, para “continuarmos a bater um papo gostoso como esse” que mantivemos na tarde de segunda feira, dia 16 de janeiro deste ano que agora começou, data que para mim ficará para sempre gravada na memória da minha vida.
Meu querido Alceu, um grande e sentido abraço agradecido! Até sempre!