A vida pela lente de uma Super 8.
As cores rugosas, o grão que dá relevo a uma realidade plana. Toda a gente a usar roupas de outra altura, cabelos de outro tempo. Óculos grossos, colarinhos gigantes e sapatos bicudos. O pai quando ainda era filho, o avô quando ainda era vivo e a tia que já não vemos há anos.
Mergulhos para uma piscina azul clarinha num dia de muito sol. Aprender a andar de bicicleta na rua que passava à frente da casa antiga. Uma festa de aniversário muito escura onde apenas se vê os brilhantes das cornetas e uma rodela de cara que se ilumina com as velas. Férias na praia, com fatos de banho estranhos e óculos escuros que hoje rotulamos de vintage.
Memórias boas, saudades e pessoas felizes: tudo o que seja filmado com uma Super 8 fica magicamente assim. Bem. Salad Days começa a tocar e sentimos o brilho e o contraste do sítio que nos rodeia a mudar.
Depois de caloroso e bem recebido álbum de estreia (2), Mac Demarco chega com um maturado Salad Days. Aproveitando o sucesso que teve o novo psicadelismo do seu primeiro LP, Mac parte para uma paragem nova: apesar da sua personalidade brincalhona e aluada, o seu som está mais adulto, menos difuso que o anterior. A guitarra continua a mesma (e ainda bem), se bem que com mais espaço para brilhar – valentes solos que vão aparecendo por entre “Goodbye Weekend” ou “Treat Her Better” – e está mais bem utilizada, mantendo a simplicidade de antigamente mas adicionando-lhe uns pozinhos extra. Os teclados também lá estão de novo, bem psicadélicos, como se quer, e a linha de bateria, subtil, lá no fundo marca passo. A nível vocal, pouco ou nada há para apontar, o seu estilo relaxado e sem grandes invenções não foge ao que nos habituou. Até os falsetes, se bem que mais contidos, continuam lá.
Destaque para “Blue Boy”, uma trip sem estupefacientes (embala-nos ao ponto de semicerrarmos os olhos enquanto sentimos o coração acalmar), “Passing out Pieces” que podia ser banda sonora de dias de passeio ao sol, com calções e mochila às costas e “Johnny’s Odissey”, malha muito forte que com apenas três simples camadas de som (teclado, cordas e percussão) hipnotiza sem pedir licença.
Acabou o filme… Merda. Esperem um parágrafo que vou só ali buscar uma bobine nova.
Já está. Continuando, podemos acabar por dizer que Salad Days é um disco de Mac Demarco dos pés à cabeça. Apesar de ainda só ter um LP – para além deste, como é óbvio – conseguiu criar um estilo singular, onde o revivalismo aquilo que de melhor os 60’s e 70’s tiveram, ganha um novo rosto, é reinventado com grande pinta. Descobre-se o “Big Mac” a milhas, basta ouvir uns acordes de seguida.
Agora quanto às diferenças entre o primeiro e este novo disco, acho que aquilo que a maioridade musical trouxe a nível técnico, restringiu um pouco o nível criativo. 2 era mais versátil, tinha mais dimensões que aquelas que Salad Days nos mostra. Não fossem as três ou quatro músicas que saltam à vista – juntar “Let My Baby Stay” e “Brother” ao conjunto – o álbum podia parecer de uma faixa só. Falta jogar menos pelo seguro, arrisco, contudo, não deixa de ser um gosto enorme ouvir as melodias que vêm daquelas mãos, a voz que passa por aquele espaço entre os dentes da frente. Gosto muito do Mac e espero que Paredes, com toda a sua mística e encanto, o ponha mais arrojado.
Escrevo estas palavras a ouvir não só o disco em análise, como o “tac-tac-tac-tac” veloz da película que grava a realidade que Demarco consegue criar. Escrevo estas palavras vendo a vida pela lente de uma Super 8. É esta a força deste psych melancólico e feliz.
Dizem que a música não tem tempo, que seja qual for a altura em que se toca este ou aquele autor, o factor qualidade garante o factor actualidade. Eu acredito. Mas mais que isso, música como esta faz o tempo que não vimos parecer aquele onde vivemos. Transporta-nos para aquilo que a nossa imaginação constrói e os nossos olhos julgam ver, as nossas mãos julgam sentir. Poucos conseguem fazer isto, hoje: Mac é um deles. Agora tenho de acabar porque a fita já começa a chegar ao fim.