Há lugar no mundo moderno para Kurt Vile? A pergunta é difícil: Vile é o tipo que se coloca em campanhas publicitárias da Levis e do Bank of America ao mesmo tempo que parece rejeitar a febre contemporânea. “É preciso estar sozinho/até numa multidão”, canta-nos, a certa altura, em B’lieve I’m going down. Talvez Vile cante só para si, ou colabore só esquivamente. E na música – o essencial, tenhamos melhor ou pior opinião sobre outras técnicas – a integridade de Kurt Vile é à prova de bala.
Recordo-me de ler, numa recente entrevista de Vile (não me recordo qual), que alguém (não me recordo quem – talvez o produtor?) o alertou para a excessiva duração dos temas e, quando lhe “sugeriu” uma alteração, Vile disse simplesmente “Assim fica demasiado curto” (não me recordo, note-se, das palavras exactas; mas para mistificação – uma palavra que muito ouvimos nas últimas semanas, pródigas quer na linguagem quer na música dada – é quanto basta). Talvez não seja de menor importância este facto: na música, Vile é implacável. Não usa truques.
Este B’lieve I’m going down chega ainda mais longe nesse caminho. De que serve a música, e este disco, para o mundo que vivemos? Talvez para nada no seu sentido mais imediato; mas é evidente que propõe um caminho, uma forma de trabalhar e pensar a arte, aqui dentro da pop. Oferece uma banda sonora diferente. Vile é deste mundo? Talvez não.“Sou um fora da lei à beira da implosão / sozinho na multidão, no canto / indo devagar para lado nenhum”.
Hoje é preciso entreter instantaneamente: fazer magia. Kurt Vile propõe-nos magia aqui, também: apenas de uma matéria mais sólida, que requer um esforço diferente. No meio de canções empoeiradas, talvez Vile seja provocador até pela maneira como encurrala o ouvinte: aguenta-te se puderes e quiseres, ouve isto com uma atenção diferente: só assim o captarás. Não esperes refrões pensados para ti, arrancados a clichés, mas uma beleza singular com este conjunto de canções – esparsa, cuidada e sobretudo adulta, do cantautor que menciona Clarence White e Gene Clark a um mundo distinto.
Há uma certa melancolia e exalação no disco (que o próprio descreve com um adjectivo peculiar: nocturno, pelo tom e pelo método de concepção) a pairar por todo o lado, que nestes temas se abandonam à sua sorte. Kurt Vile, na realidade, sempre foi assim (instrumentos usados à parte, arranjos de lado – sim, tem piano, mete banjo, etc e tal): talvez a surpresa seja não ter abdicado. Continua a saber separar o trigo do joio, a fazer as coisas como acha que devem ser feitas. O resto é o mesmo de sempre: um escritor de canções e músico exímio, de sensibilidade pouco comum, difícil de ser rotulado, que sabe dosear seriedade e uma auto-confiança irónica com um humor auto-depreciativo quase absurdo, que só lhe serve a ele. Veja-se: “Vamos dar uma baforada num cigarro e ver o que conseguimos / uma correção revigorante e um pulmão preto”, canta em “Dust Bunnies”. Ou: “É difícil pensar com um cérebro esmagado / Esperemos que não deixe uma mancha permanente”, do mesmo tema.
E Vile é também um músico que resiste – à América industrializada e apressada, ao entretenimento permanente e de deitar fora pouco depois, à rejeição da diferença, à urgência do movimento e dos truques exibicionistas para captar a atenção dos outros, à incompreensão face à ausência de uma satisfação permanente – jovial. Às personagens secundárias e ao fim do mistério. Oiça-se a música final, “Wild Imagination”, um lancinante adeus que é tão só um até já (até ver). “Vou-te contar o meu passado – tem crentes e amantes, e drogados e sonhadores, e bêbados e conspiradores”, canta.
É a tristeza fabricada com seriedade: sem lamentos, humana. Há quem goste da outra: por ora terão (teremos) mesmo de levar com ele, de sorriso no rosto (talvez rindo de nós, talvez de si mesmo), com as perguntas e respostas de sempre. E recordar daqui a bons anos o disco que Kurt Vile gravou durante várias noites, acordado, enquanto todos dormíamos.