E, ao terceiro disco, Kevin Morby ascende ao Olimpo. O caminho já estava a ser feito, para os que lhe prestavam atenção. Com dois discos anteriores de qualidade invulgar (Harlem River, o primeiro, mais do que Still Life, o segundo), ia mostrando a sua folk delicadíssima e assombrada, feita de tiradas arrancadas (e moldadas a partir) da claustrofóbica realidade, de canções feitas de temas maiores de que nos distraímos intelectualmente, no quotidiano e na arte: morte, fogo (“If you find water please call my name / put me out like a fire, cover me in rain”, canta em “Water”, reminescente de “I don’t wanna burn from the inside”, de “Slow Train”), terra, água, comunicação, sonho. Coloca-se do lado dos condenados, dos que não estão “distraídos da tristeza”, como lhes chamava Manuel de Freitas, a que Morby assente em “Destroyer” (“E a beleza é algo fugaz / vem para tocar, nunca para reclamar”).
Singing Saw, ainda fresco, editado este mês, é mais um passo nessa obsessão contínua que é a fuga ao real. Melhor, talvez: que é a fuga ao entretenimento e à banalidade dos dias e da linguagem. Em Singing Saw, esse escapismo permanece, como se Kevin Morby escavasse até poder. Mas vai mais fundo na procura da “beleza” enquanto conceito estético: é um disco, em simultâneo, mais cheio mas dolorosamente isolado, mais assombrado mas profundamente delicado, misturando a brutalidade do mal (“The man lived in this town / ’til that pig took him down”, de “I have been to the mountain”, canção de homenagem a Eric Garner, afro-americano morto às mãos de Daniel Pantaleo, polícia nova-iorquino) com a obsessão aterrada pelo fim (“And now I go down / towards the water / in which we cried / and now I go down / towards the dirt / in which we died”).
Nada disto é novo: em 2014, ouvíamo-lo cantar “If I were to die today / Puppet in that great charade / The last thing that you’d hear me say / is bury me in different shapes / of the parade” (“Parade”, Still Life). Ouvimo-lo agora de novo, depois de tudo, com um coro de despedida indispensável: “But I was warm like a fire / for I was full of desire / to hold on, to not let go” (“Water”). O desafio, esse permanece: “Take me as I come now / take me as I will / Take me as an angel”, cantava em “Amen”, no seu álbum anterior; “You’re going to do / what you came here to do / so why not do it now / and cut me down?”, canta agora em “Cut me down”.
Todo este exercício poético serve-se, claro está, de uma inspirada composição musical, mais arrojada que em álbuns anteriores: os coros nos sítios certos com o tom certo, as linhas de piano capazes de emocionar até o mais empedernido dos melómanos em “Ferris Wheel”, o saxofone de “Destroyer”, o não menos importante silêncio, as impurezas e inocências reduzidas ao osso. Não deixa de ser curioso e singular que, com o seu trabalho mais inspirado, mais “resistente”, Kevin Morby vá obter um reconhecimento maior. Talvez a música aqui e ali o compense, como nos explica em “Drunk and on a Star”, por mais que repita, em duas canções diferentes, que “as lágrimas vão juntar-se nos meus [seus] olhos”:
“Have you heard my guitar singing / As it rises from the earth? / And the company it’s bringing / Is beautiful and nothing worse”
Depois dos Woods, depois dos The Babies, ao seu terceiro álbum a solo, ganhámos um cançonetista capaz de entrar no leque de cantautores clássicos, um trovador genial, numa altura em que o adjetivo é tantas vezes violado. “Looking for a fire / I’m looking to burn”, canta, logo na inaugural “Cut me down”. E a que magnífico incêndio assistimos.