1991 foi não só um ano de viragem para a música, foi o ano em que saíram para as lojas quatro monumentos que deram entrada aos anos 90 e encerraram os malditos 80’s na sua caixa de maquilhagem. Metallica (o álbum preto), em Agosto; Use Your Illusion I e II, dos Guns N’ Roses, em Setembro; e Nevermind, o testemunho de uma geração lavrado pelos Nirvana, no final do mesmo mês. Dois meses, portanto, menos de 60 dias, que nos marcaram necessariamente até hoje.
Falamos de viragem, e para o confirmar basta olhar para a lista dos discos mais vendidos de 1991 e de 1992. Em 1991, o top semanal de álbuns mais vendidos da Billboard começa com domínio significativo de dois artistas: Vanilla Ice e Mariah Carey. Em Maio, os R.E.M. com o seu Out of Time fazem a sua gracinha durante duas semanas, com um Michael Bolton pelo meio. Em Junho e Julho, o ‘hair-metal’ mete as garras de fora, com Skid Row e Van Halen. Mas Setembro e Outubro já são meses de Metallica e de Guns N’ Roses, lutando contra Michael Jackson e Garth Brooks.
Ao contrário dos Nirvana, que o mundo não conhecia realmente antes de Nevermind, Metallica e Guns N’ Roses eram já nomes estabelecidos na cena. Os primeiros já tinham longa carreira e uma enorme legião de fãs, os segundos haviam surgido como uma locomotiva com Appetite for Destruction, de 1987, confirmaram o potencial com GnR Lies e com concertos atrás de concertos feitos de caos, motins e muito rock n roll. Assim, não é de estranhar que os discos destas bandas tenham conseguido encimar os tops logo aquando da edição, enquanto Nevermind foi conquistando as pessoas mais lentamente (obrigado MTV), só atingindo esse posto só na primeira metade do ano seguinte.
Curiosamente, no caso dos Guns, os dois discos da transformação foram também os dois discos do fim de uma era. Por comparação com os dois discos anteriores, tínhamos perante nós uns Guns claramente diferentes e, sobretudo, maiores. A controvérsia era a mesma, a agressividade também, mas a música adquire tonalidades muito mais variadas e muito mais ambiciosas com a fase Use Your Illusion. Foi a chegada à maturidade da banda de Axl Rose e de Slash, com os músicos apostados em tornar-se em mais do que apenas uns Skid Row; queriam mesmo ser a maior e melhor banda de hard rock do mundo. E, nesses anos, conseguiram-no.
Se em Use Your Illusion I a banda aproveitou algum do material que vinha de trás, no segundo volume desse trabalho (editados ambos no mesmo dia) prevalecem os temas frescos, compostos especialmente nessa fase. Neste II, a ambição revela-se. Quatro temas acima dos sete minutos de duração, algo que seria impensável para os Guns de laca no cabelo da fase Appetite for Destruction, estruturas cada vez mais complexas, maior variedade instrumental e de arranjos, baladas com fartura. O disco abre com “Civil War”, a bater nos 7 minutos e muito, um tema que acabou por ficar necessariamente na lista dos mais fortes dos Guns. Basta, aliás, ouvir essa música, para se perceber que os Guns haviam mudado, haviam crescido, haviam dado asas à sua ambição para além dos temas rápidos de destruição sonora movida a Jack Daniels. É também a última música da banda a contar com a participação de Steven Adler, primeiro baterista, expulso da banda devido ao abuso de drogas, o que não deixa de ser um feito notável tendo em atenção a história de consumo de substâncias por parte de quase todos os outros membros. Para o seu lugar entrou Matt Sorum, ex-Cult, que viria a marcar muito o som desta fase da banda, não particularmente criativo mas um torpedo de energia e de porrada na bateria.
Depois de uma relativamente esquecível “14 years”, um simpático boogie, “Yesterdays” é uma semi-balada amarga e mexida, com um dedilhar inicial a trazer-nos à memória o arranque de “Paradise City”. Segue-se mais um ponto muito alto, até na digressão de promoção dos discos. Se I trazia “Live and Let Die”, de Paul McCartney, aqui temos “Knocking on Heaven’s Door”, de Bob Dylan. Uma versão que, indubitavelmente, os Guns fizeram sua, conseguindo, na minha opinião, igualar ou até superar o já extraordinário original. Um portento.
“Get in the Ring” consegue o primeiro autocolante de “explicit lyrics” do disco e é um tema para sempre marcado pela controvérsia. Com um início muito melódico quase a la Ramones, arranca para um rock gingão e movimentado. A letra é uma simples desculpa para Axl arrasar a indústria musical, chamando mesmo críticos musicais pelo verdadeiro nome e desafiando-os a entrar no ringue para que ele possa “kick your motherfuckin’ ass”. Ah, sim, os bons e velhos rufias continuavam os mesmos. O tema tem um “público falso”, como se fosse uma música ao vivo, para dar a ideia de uns Guns unidos aos seus fãs contra todos aqueles que os desafiavam.
“Shotgun Blues” não tem nada de blues, e nada de especial, sendo provavelmente uma das músicas mais básicas dos Guns. É também um exemplo de como a energia da banda conseguia pegar num tema banal e ainda assim dar-lhe algo de especial.
Segue-se outro épico, “Breakdown”, música longuíssima e mutante, que vai evoluindo, deixando para trás a pele anterior – qual cobra – sem nunca perder o rumo. Um início lento, lindíssimo, até à entrada da ameaçadora e cortante guitarra-ritmo de Izzy Stradlin, que serve de trave-mestra até aos 3:38, quando Slash agarra na bola com a sua guitarra-ritmo e eleva o tema até outro nível.
“Pretty Tied Up” começa com uma cítara, à qual se junta a guitarra de Izzy com um poderoso e repetitivo riff vagamente oriental, o baixo saliente de Duff Mckagan e a pancada de Sorum, acabando por crescer até ser um dos temas mais gingantes do disco, com uma aura quase funk sem o ser. Segue-se “Locomotive”, um dos temas mais extensos do disco, bem acima dos oito minutos, e mais uma prova de que se Axl era o carisma e Slash o que elevava as coisas para a estratosfera, os alicerces dos Guns sempre estiveram assentes em Izzy e Duff. A meio do tema já Slash disparou um solo daqueles de meter vergonha a qualquer guitarrista, depois a coisa abranda até uma parte final movida a piano, ao wah-wah da guitarra e à voz sussurrante de Axl, num momento de tranquilidade árida e cansada.
“So Fine” é uma balada. Ponto. Ao pé de outras pérolas dos Guns não é uma malha gigante, mas para uma banda menor poderia ser um dos momentos altos de carreira. Escrita e cantada em parte por Duff McKagan, é mais um exemplo de como o som da banda cresceu em dimensão e espessura com a adição do piano, neste caso em tons de blues.
“Estranged” traz-nos de novo ao território das baladas, mas aqui uma balada a sério, à Guns. Se quisermos, é o “November Rain” de II, mas poupando no azeite, o que se agradece. Uma música de Rose acerca de solidão e de afastamento, e um dos temas mais subvalorizados da carreira dos Guns.
A seguir as coisas tornam-se sérias com o petardo atómico de “You Could Be Mine”. A música que serviu de banda sonora ao filme “Terminator 2”, é um colosso de hard rock. O começo, guitarra, bateria e baixo em tom de ameaça; Slash a pegar na deixa e a conduzir à entrada em cena de Axl. “With your bitch slap rappin’ and your cocaine tongue, you get nothing done”, isto praticamente diz tudo. Em termos estruturais é uma música bastante simples, com ponte, refrão, etc, mas é um portento sonoro e de energia, e um dos melhores temas da carreira da banda.
A caminho do fecho do disco temos “Don’t Cry”, malha maior da carreira da banda, mas aqui numa versão alternativa, com letra e melodia vocal ligeiramente alteradas. O original, que surgiu em I e que mereceu o teledisco muitíssimo rodado nos Top + de Portugal dos anos 90, é superior. Durante muito tempo, dada a habituação que tinha à versão original do tema, nem conseguia ouvir esta sem uma sensação esquisita, mas acabou por cumprir a sua função: quando depois de milhentas audições me fartei da original “Don’t Cry”, podia voltar a ouvir a música, esta, e assim consegui ser conquistado pelos seus méritos.
Use Your Illusion II podia (e devia) ter acabado aqui. E tudo ficaria bem. Mas havia mais uma música, a 14ª, para encafuar no disco. Falamos de “My World”, uma porcaria rap-industrial que é provavelmente o pior tema alguma vez gravado pelos Guns N’ Roses. Serve para provocação, mas se calhar nem para isso.
Com a saga Use Your Illusion (30 temas em dois discos editados simultaneamente) os Guns tornaram-se a maior banda do mundo. Ponto final. Poucos meses depois, com a banda na estrada agora numa digressão esmagadora, Izzy Stradlin abandona os Guns N’ Roses, farto das birras e falta de profissionalismo de Axl e do caos que era fazer parte da banda mais quimicamente poluída do planeta Terra. Foi esse o princípio do fim para a banda e para a própria história do rock.
Os anos seguintes trariam a torrente imparável do grunge, com os Nirvana à cabeça. Era a nova geração de Seattle, dos putos que vinham de uma cena pequena e que não acreditavam em digressões gigantes e palcos elaborados, e os Guns, herdeiros do ‘hair-metal’ e do hard-rock dos anos 80, começaram subitamente a ser vistos como representantes de uma certa velha guarda, do hard-rock agressivo, machista, violento e perigoso. E, sobretudo, inchado com a sua dimensão mediática e estrutural.
Com a entrada em cena dos Nirvana, que nunca deram tantos concertos nem nunca quiseram ser tão grandes como os Guns, acabou de certa forma uma época, a dos supergrupos que dominavam, a nível mundial. Tirando um breve trecho em que os Smashing Pumpkins, com Mellon Collie and the Infinite Sadness, ocuparam o trono, não mais chegou a haver uma banda dominante no universo rock, em termos de popularidade massificada. O grunge acabou com isso, mesmo com todo o sucesso que, por exemplo, uns Pearl Jam, tiveram, e o próprio jogo se foi alterando. Foi o início de uma época de pulverização de gostos e de tendências, que até hoje não cessou de aumentar, e que até traz as suas vantagens. Em retrospectiva, os Guns N’ Roses foram o último exemplo de um fenómeno de rock de massas herdeiro de um longo caminho iniciado no início dos anos 80.
Use Your Illusion II (que vendeu mais que o I e chegou, ao contrário deste, a número 1 nos EUA) é o testamento final desse caminho, e é ainda hoje um extraordinário monumento rock, de uma banda na plena posse de todos os seus poderes, acelerando cada vez mais até saltar do precipício do excesso. Este disco apanha-os então, no preciso momento antes de acabar o chão, ainda em velocidade máxima e no seu expoente criativo. E, diga-se em abono da verdade e desta enorme banda, que o disco não ganhou uma ruga, até por ter evitado a produção fatela que marcava discos de então, dos Skid Row aos Def Leppard. Continua forte, pertinente, agressivo, complexo e perigoso.
Um hino rock, de quando o rock era coisa à séria, e que faz falta nos dias de hoje.