Em 2004, Jorge Palma rodeou-se de muitos dos cúmplices que agora, quase 20 anos depois, também ajudaram a construir o novo disco, num álbum onde estão presentes – como sempre – a melhor escrita e a forma única como capta e traduz, com especial argúcia, as mais simples e universais emoções humanas.
“O Jorge não consegue fazer más canções. Tomara muitos fazerem boas canções como as piores canções do Jorge”, dizia, recentemente, o músico Nuno Lucas no mini-documentário feito sobre o álbum que Palma editou este ano, VIDA – e sobre o qual haveremos certamente de falar daqui por três meses, quando for altura de fazer balanços de 2023.
Descontemos o exagero, de fã e aprendiz – que humano pode gabar-se de nunca ter falhado a mira? -, e fiquemos com a ideia geral, que é acertada. É que ao longo da carreira, Palma, mesmo quando não acertou, só raramente escreveu canções desenxabidas: poderá ter falhado aqui ou ali o arranjo, a magia que há no casamento entre a instrumentação e o canto, mas despidas todas as canções à melodia base e à letra, só esporadicamente não há ouro por encontrar.
Aqui chegados, vamos àquilo a que o texto se propõe, que é analisar o álbum Norte, editado em 2004. A ponte com o presente, quase 20 anos passados, é propositada: à época, como no recente VIDA, Palma socorreu-se da mestria de Mário Barreiros, instrumentista e compositor com uma carreira de grande peso na música portuguesa, nome incontornável do jazz e produtor seguríssimo. Escusado será dizer que, como em VIDA, também neste Norte há elegância e bom gosto nos arranjos e no ambiente sonoro do disco. Não é por acaso, mas convém chamar à pedra outros responsáveis: Frank Möbus, Carlos Bica, Flak…
As primeiras impressões são sempre importantes, e Palma aqui capricha. Na capa, desde logo, com o piano a que tanto o associamos (SÓ porque sim) em grande destaque. E no arranque, com uma das pérolas de Norte, a belíssima “Passeio dos Prodígios”: teclas do piano a darem o mote e Palma a mostrar a inspiração da melhor escrita, um solitário romântico à procura de consolo, o individualista que no amor encontra a comunhão e um isolamento mais afável do mundo:
“Vamos lá contar as armas / tu e eu de braço dado / nesta estrada meio deserta / não sabemos quanto tempo as tréguas vão durar / há vitórias e derrotas / apontadas em silêncio / no diário imaginário / onde empilhamos as razões para lutar”
Apetece citar cada verso, mas há momentos em que Palma parece captar e traduzir com especial argúcia emoções humanas, comuns a todos, aqueles momentos em que damos o flanco, cantando-os com a sabedoria de quem os viveu: “Quantas vezes te odiei com medo de te amar”, “vejo o fundo da garrafa / acendo mais outro cigarro”, “para quê fazer projetos / quando sai tudo ao contrário / pode ser que por milagre… / troquemos as voltas aos deuses”.
Como uma canção, um disco precisa de arrancar bem para nos deixar de orelha atenta. Não chega, mas sem a magia da sedução ninguém é persuadido. E Norte avança daí, numa travessia já serena, talvez não cansada mas vivida, pelo andamento a fervilhar de “Optimista Céptico”, pelo delicioso acinte, a brincar com o cinzentismo (“temos preguiça de viver”) e com expressões históricas (“estás demitido / obviamente demitido”) e a deixar farpas enunciadas com ginga (“és um crítico… de merda”), de “Os Demitidos”.
Ali pelo meio do disco há mais canções a não perder: o ambiente de clube fumarento com um piano de “Tama-ra”, a longa respiração de “D. Quixote foi-se embora”. Mas recomenda-se que a audição prossiga, porque mais tarde virá “Valsa de um Homem Carente” – um extraordinário encontro Palma-Carlos Tê, o piano a seguir a liderança da palavra, a acompanhá-la e a intercalar o poema que suspira de amor – e a belíssima “Outono (Estratégia da cigarra)”, em que o sábio canta já as lições da vida, as curvas e errâncias da sua existência (“as voltas que eu já dei / para me encontrar”), com uma serenidade outonal, quase invernal, de quem saboreou “o que a vida me [lhe] ofereceu”. Um contraste perfeito com a faixa que se lhe segue, o blues de “Demónios Interiores”, sumário perfeito da vida e da música de Palma: aqui a lentidão, a vida vivida a um ritmo descontraído, observante, e logo ali a vida acelerada, desempoeirada, prego a fundo, ao vivo no Johnny Guitar.
Depois de Norte, chegaria, tardiamente é certo, o sucesso comercial pop a solo (depois do jeito que deram os Rio Grande e os Cabeças no Ar, projetos coletivos que hão-de ter financiado mais viagens e aventuras): Voo Noturno, que vendeu como pãezinhos quentes graças a “Encosta-te a Mim” – o hit a que as rádios se afiambraram como cães perante um osso -, e o pouco inspirado Com Todo o Respeito. Mas tudo a seu tempo…