Auspiciosa estreia de Jónatas Pires a solo. O vocalista dos Pontos Negros acaba de lançar um disco grandioso, eloquente, luminoso e carregado de esperança, um bálsamo essencial para estes tempos nebulosos.
Depois de se dar a conhecer com os Pontos Negros e sua refrescante injecção de sangue novo ao rock em português, Jónatas já tinha lançado um EP a solo (Vestido Preto, de 2009, aonde foi buscar a canção que abre este novo álbum) e foi autor do projecto Tudo É Vaidade, causa nobre musicada com rock-gospel. Mas é agora, com Terra Prometida, que lança o seu primeiro Álbum em nome próprio.
Como nos conta, em entrevista, «é o primeiro onde está lá o meu nome e mais ninguém tem de se responsabilizar pelo que é cantado. É, acima de tudo, o disco que conta a história que queria contar. No entanto, nunca seria o mesmo disco sem o contributo de todos os que nele tocam e que investiram nas canções. Nesse sentido, o disco é meu, mas eu sou um plural até quando toco sozinho». E esse plural, em Terra Prometida, é composto por gente como os velhos cúmplices Samuel Úria, David Pires e Silas Ferreira dos Pontos Negros, a cada vez mais versátil Selma Uamusse ou o maestro dos Capitão Fausto, Manuel Palha.
Ainda falando de plural, esta foi também a primeira vez que Jónatas pôs um dos seus descendentes a participar num disco: «uma experiência nada memorável, mas absolutamente inesquecível». Por ter sido pai há poucos anos, isto também veio trazer ao músico menos tempo para criar portanto quando pode, vai com tudo: «o tempo que tenho para escrever e compor é preciosíssimo e não me posso dar ao luxo de o desperdiçar. Talvez por isso as canções deste disco tenham sido escritas com a mentalidade de “se esta for a última canção que ponho cá fora, tem de valer a pena”».
E, de facto, valeu. Terra Prometida é um disco cheio canções excelentes, que vão da grandiloquência orquestral à Arcade Fire até baladas sussurradas em guitarra acústica, passando por um blues do delta do Tejo e, claro, sem esquecer a matriz rock (roque) fundadora da Flor Caveira. E estas 11 canções são-nos apresentadas através de um alinhamento cuidadosamente elaborado – um arranque demolidor (destaque alargado ao hino memorável “Quando o Vendaval Vier” e à beleza devastadora de “Rosto Negro”) com cinco canções que se interligam harmoniosamente, não se sabe onde começa uma e acaba outra mas sabe-se que nos tiram completamente o fôlego. Depois, a meio, um “Epílogo” que dá o mote para a segunda metade do disco, «é uma espécie de divisor entre Lado A e Lado B. O disco amadurece e o alinhamento está pensado para gerir essa complexidade emocional (…) está pensado ao pormenor para nunca tirar o pé do acelerador, só reduzimos as mudanças para gerir o andamento sem perder o balanço».
Gere-se o andamento através de umas quantas baladas, num registo a que não estamos habituados a ouvir Jónatas Pires cantar, mas ele sente-se confortável nessa pele: «É uma dialética entre forma e conteúdo. Não se consegue dizer todas as coisas da mesma maneira. Há palavras que precisam de um espaço, de um conforto, diferente. A “Mesa Posta” não podia ser tocada com um arranjo de banda, não faz sentido, por exemplo. Nas canções mais tranquilas ainda há muita crueza, não são polidas nem limadas, há aquele lado bruto que ajuda a ligá-las às canções mais enérgicas».
Além da questão instrumental há também outra dualidade marcante, em termos líricos: apesar de ser um álbum cheio de esperança, há imensas referências à morte: «Não é um tema que esteja nas tendências do Twitter, concedo. Mas aprendemos mais sobre nós e sobre a vida num funeral do que numa festa; no fundo, acabaremos todos por lá chegar e o dia da morte de uma pessoa revela sempre muito mais do que o dia do nascimento. Mas o disco aborda várias formas de morte: a morte de quem ainda respira, mas não vive; a morte como símbolo de uma distância, uma ausência, de onde a esperança nunca está ausente por inteiro, está sempre à espreita, à espera de poder brotar». Ainda sobre as letras, Jónatas cita duas fontes de inspiração sagrada, teologia e rock: «quem andar à procura e quiser mergulhar no oceano narrativo das canções, encontra muitas referências a temas transversais. Os lugares, os nomes, são acima de tudo luzeiros que apontam para alguma coisa, para uma realidade que, para ser interpretada, precisa de metáforas e de imaginação e não de um manual técnico ou de uma folha de cálculo. Este é um disco que tanto vai rapinar palavras ao Tolentino Mendonça como coros à “Sympathy For The Devil” dos Rolling Stones. Mas é preciso perceber para onde é que estas coisas apontam, não tanto o que são por si próprias. É por isso que talvez seja, como já me disseram, um disco religioso para pessoas sem religião (uma descrição que me envaidece)».
Tudo é vaidade, sim, mas não é caso para menos. Jónatas Pires assina aqui um dos melhores álbuns da música nacional dos últimos anos, sem surpresa para quem já o seguia nos Pontos Negros mas agora com uma prova de maturidade enquanto intérprete e compositor. E então oferece-nos uma colecção de canções que nos iluminam, dão alento e fazem acreditar no presente e sonhar com o futuro, um disco que entra bem à primeira mas obriga logo a repetir vezes sem conta. Uma chegada, de facto, à Terra Pormetida? «Quem pode ser juiz dessa pergunta é quem ouve as canções. Eu limito-me a cantá-las e deixá-las mostrar o caminho».