Talvez o disco de hip-hop mais influente dos anos 2000.
Um dos ingredientes mais saborosos do hip-hop é o sampling, a arte de cortar e colar pedaços das música dos outros. O seu auge ocorreu na viragem para os anos 90, quando bandas como os Public Enemy, os Beastie Boys e os De La Soul tinham mais samples num só tema do que os há hoje em discos inteiros. Entretanto a legislação mudou, passando a ser obrigatório o pedido de autorização aos detentores dos direitos, pagando-se os olhos da cara pelo mais pequeno sample, e muito mais em indemnizações quando as coisas dão para o torto. Ora isso dissuadiu drasticamente o recurso a samples, cada vez mais ausentes das batidas dos anos 90.
Mas na viragem para o novo milénio, Jay-Z mudou as regras do jogo com o influente The Blueprint, um regresso a uma produção dominada por samples. Recorrendo a excertos de música soul dos anos 70, The Blueprint devolve o sentido de história ao hip-hop, passando o testemunho às novas gerações. Já fazia falta ao género o travo quente e orgânico que atravessa o disco. A predilecção por samples vocais, como o de Al Green em “Blueprint (Momma Loves Me)”, dá-lhe ainda mais aconchego. Quase que ouvimos o crepitar indolente da lareira ao fundo.
Em “U Don’t Know”, o produtor Just Blaze acelera o tempo do sample vocal de Bobby Bird, dando-lhe um tom agudo de desenho animado. O truque foi inventado por RZA uns anos antes (no segundo disco dos Wu-Tang Clan) mas Blaze eleva a estética para outro patamar, entabulando agora diálogos entre o sample vocal e o rapper. Este estilo de produção, o chamado chipmunk soul, acabou por dominar a primeira metade da década, muito por influência de The Blueprint, conseguindo-se assim adiar por mais uns anos a ascensão do hip-hop sulista.
O seu legado não acaba aqui. The Blueprint foi a rampa de lançamento do nome porventura mais importante do hip-hop do século XXI. Falamos, é claro, de Kanye West, então um ilustre desconhecido, mas depressa aclamado pela sua inventiva produção neste disco. Ficou memorável o sample de “Five to One” dos Doors em “Takeover”, onde o rival Nas é violentamente decapitado pelos baixos-guilhotina de Kanye. O seu primeiro disco a solo só surgiria três anos depois mas o seu estatuto de produtor gourmet começa aqui.
O flow de Jay-Z é escorreito, mas não está ao nível de um Biggie, longe disso. Pensem em “Renegade” – um dos momentos mais altos do disco, grande hino à liberdade de expressão – e digam-me lá se o convidado Eminem não ofusca por completo o anfitrião? Pouco importa. Jay-Z sabe sempre a verdade. Cresceu na rua, num bairro social em Brooklyn, “rapa” como quem vende crack.
Mas o que o torna realmente enorme é o talento da sua escrita. Mesmo quando o desperdiça com a costumeira bazófia de macho alfa, a sua verve e sentido de humor redimem-no de toda a boçalidade gangsta. Quando baixa a guarda e assume alguma vulnerabilidade, temos jackpot. É o que sucede em “Blueprint (Momma Loves Me)”, onde nomeia com carinho todas as pessoas que o ampararam na selva de betão onde cresceu.
Sabemos o quanto o sonho americano é um mito, que por cada self-made man à Jay-Z há um milhão de sonhos desfeitos. Mas há neste homem uma afirmação tão inequívoca de vitalidade que por momentos acreditamos no hipócrita american dream. Nunca o perdoaremos por isso.