Em “Bojack Horseman”, série sensação da Netflix que acabou por conferir um peso algo inacreditável a uma história de um cavalo-celebridade antropomórfico com problemas de alcoolismo, a personagem principal diz na última temporada: “não podemos ter finais felizes nas sitcoms, porque se toda a gente está feliz, então a série acabou, e acima de tudo, a série… tem de continuar”.
A referência é (propositadamente) rebuscada, mas a afirmação deve ser mais ou menos compreensível a qualquer pessoa, mesmo que não tenha tido contacto com a série de animação. O que é que isto significa, no plano maior das coisas? Que as vidas são como as séries, e que quando a tristeza se esgota, chegou a hora de nos despedirmos? É um exagero (propositado), mas uma reflexão que nos pode interessar. Será que só nos podem desligar a máquina quando passamos os testes que determinam que atingimos o índice máximo de felicidade? Será que só podemos escolher um caixão quando já conversámos tudo o que tínhamos de conversar, quando já resolvemos tudo o que havia por resolver no mundo terrestre? Que é a miséria que nos vai soprando pela estrada fora e que, quando o seu fôlego se esgota é que podemos deixar de andar?
Se a miséria opera para a maioria como uma brisa que vai fazendo as hélices girar lentamente, para Jackson C. Frank, atingiu-o como uma rajada de vento de tal força que o fez cair mesmo antes de preencher os requisitos enumerados acima. Jackson C. Frank viveu, de facto, uma vida sofrida, a rebentar pelas costuras daquilo que os mais otimistas apelidam de “azar”, como muitos outros. Interessa-nos ele, sobretudo, pelas canções que tocou, escreveu e gravou (que, na verdade, não foram muitas) e da forma como a sua vida não deixou de acontecer depois de subitamente deixar de existir, como se andasse desvairada à procura da felicidade que o seu dono não encontrou antes do seu fim.
Recuemos: Jackson C. Frank nasceu a 2 de março de 1943, em Nova Iorque. Pouco se pode dizer sobre os curtos onze anos de felicidade (assumimos) que viveu antes de, como um relâmpago inesperado, ser atingido por um destroço cuja mossa que lhe deixou nunca foi consertada: a 23 de março de 1954, um forno explodiu na sua escola, levando a vida da sua pequena namorada e matando mais quinze. Frank sobreviveu com metade do corpo queimado e danos corporais e psíquicos que lhe mancharam de terror o resto dos seus dias.
Mas, mesmo que aplicar a uma circunstância tão trágica que parece inventada a máxima de “há males que vêm por bem” pareça insensível, foi no hospital que Frank travou conhecimento com aquilo que pareceu ser a porta de saída de uma existência miserável: a música. Charlie Castelli, um professor de visita, decidiu presentear o pequeno Jackson com uma guitarra, um dos poucos entretenimentos possíveis para uma criança acamada nos anos cinquenta. Depois, veio o Elvis na televisão e na rádio (um ídolo ao qual conseguiu apertar a mão em 1957, acompanhado pela mãe, em Tennessee) e, já recuperado, Jackson fez da guitarra o seu soro eterno.
Em 1965, com 22 curtos anos de vida já separados num antes e num depois, lançou o seu primeiro e último disco. Na altura, vivia em Inglaterra, à qual chegara graças a uma viagem de barco paga pela indemnização do seu acidente, e mergulhara na borbulhante cena folk local. Quem lá também vivia era Paul Simon, que generosamente produziu Jackson C. Frank. Não admira que tenha batizado o álbum com o seu próprio nome, não fosse este uma coleção de vislumbres derradeiramente pessoais do seu eu mais íntimo. Para o confirmar, basta passar os olhos na desoladora faixa que o abre, “Blues Run The Game”, onde se queixa que, vá onde vá, os “blues são todos iguais”. Mas seria injusto descartar Frank como um choramingas que geme de guitarra nos braços; a sua constituição é bem mais complexa, e mesmo que os espinhos que traz cravados no coração saltem à vista aqui e ali, abre em si um leque vasto de disposições que entrega com convicção: o confiante bardo em “Don’t Look Back Over Your Shoulder”, o contador de histórias em “My Name Is Carnival”, o compositor sensível em “I Want To Be Alone”. Conhecer todos os ângulos que se revelam de Frank quando lhe metem uma guitarra nas mãos e mesmo assim regressar ao mais esperado (o do homem de coração perpetuamente partido) em “Marlene” transforma sem aviso o coração em líquido.
A partir daqui, a história adensa-se e ganha contornos de uma miséria que, segundo a máxima que pescámos em Bojack Horseman, daria a Frank mais cinco temporadas garantidas. Pouco depois do lançamento de Jackson C. Frank, a saúde mental do músico iniciou um processo de dolorosa deterioração: os demónios do fumo do incêndio da infância começavam a sufocar-lhe o bom senso, e as críticas apontavam-lhe um lugar cativo no sofá do psiquiatra. Em vez disso, regressa à América e é em Woodstock que se casa com a mulher que viria a dar-lhe um filho. Mas, como a vida de Frank se mede em desastres que testariam a resiliência de qualquer um, o rapaz veio a morrer novo e subitamente. Frank, compreensivelmente, enlouquece e é internado num hospício. Quanto à sua música, nada a poderia elevar a um público maior do que um pequeno grupo de fãs: nem o artigo que Karl Dallas escreveu para o Melody Maker, no qual se desfaz em elogios ao único disco de Frank, nem uma re-edição de nome Jackson Frank Again lançada em 1978.
Passa o início dos anos oitenta no sofá dos pais, até que, um dia, em 1984, o encontram fugido para Nova Iorque. Busca incessantemente Paul Simon (quiçá para gravar mais qualquer coisa?). Falha. Salta de abrigo em abrigo, de hospício em hospício. Querem enfiar-lhe um diagnóstico de esquizofrenia maníaca pela goela abaixo, mas ele regurgita sempre o trauma de infância como razão (credível). A saúde engordou-o ao ponto de ser irreconhecível aos próximos, não se lava, torna-se uma concha vazia de um homem que em tempos prometia dar piruetas pelas salas de concertos de toda a América. Estava desfigurado: uma bala perdida atingira-o e cegara-o de um olho. A música, essa, devia andar longe das suas maiores preocupações. Morreu de pneumonia um dia depois do seu aniversário, em 1999. Tinha 56 anos.
É certo que aqui a máxima de Bojack Horseman (que carrega consigo um otimismo sincero e convincente) se torna confusa. Não é uma questão de Jackson C. Frank não ter tido tempo para encontrar um adeus feliz, Jackson C. Frank nunca teria um final feliz. Logo, a sua história nunca poderia ter fim: a série nunca poderia acabar, porque, para acabar, parece que tinha de estar tudo bem. Mas, na verdade, a história parece não ter acabado: apesar de nunca ter atingido fama em vida, o seu único disco multiplicou-se em significados no último século, sempre que um admirador pegou na guitarra para o cantar de mil e uma novas formas. A lista impõe respeito: Marianne Faithfull, Laura Marling, Robin Pecknold e um ilustre desconhecido para outro dia, Nick Drake, entre muitos, muitos outros. Frank pode ter morrido miserável, mas a simples melancolia dos seus temas e a sua voz robusta continuam vivas e ardentes, implorando a reimaginação, a reexploração, a retransformação em matéria nova. Jackson C. Frank e o seu autor continuam em todo o lado. Portanto, a história pode continuar e talvez até já haja uma conclusão satisfatória em mira.