
Vashti Bunyan fugiu de um conto de fadas que se esqueceu de a pedir de volta. É suspeita em quase tudo. Desde a sua face suave a quem a velhice roubou pouco ou nenhum encanto (uns olhos grandes e sonhadores, um cabelo farto que lhe cai pelos ombros e uma expressão que emana uma suspirada tranquilidade de oceano), à sua música (encantadora, delicada, com traços de uma infantilidade nostálgica de quem já cresceu mais que nós) e até à sua carreira – uma verdadeira gata borralheira do panorama musical do século XX, a sua obra permaneceu grande parte da sua vida adormecida no esquecimento, até ser acordada por ouvidos curiosos no virar do século – tudo indica um fenómeno que melhor cabia num livro de histórias.
Nascida em Newcastle em 1945, ingressou na sua adolescência numa escola de Belas Artes em Oxford, da qual foi rapidamente expulsa por se revelar invisível nas aulas – naturalmente, já farejara que a sua verdadeira vocação passava da tela e pincel para pintar aguarelas com as cordas vocais. Aos dezoito anos, viajou sozinha para Nova Iorque; apaixonou-se por Dylan e pela música e decidiu, fria e convicta, que encontrara o seu nicho. E mesmo assim, quase que foi novamente expulsa.
Num mundo no qual nem todos podiam sonhar com o sucesso de uns Rolling Stones ou de uma Janis Joplin, Vashti passou os finais da década de sessenta lançando uma ou outra música falhada que passava debaixo do nariz do público atarefado, tropeçando entre o barulho das estrelas que a rodeavam – ela que nunca levantara sequer a voz. Resignada, fez o que qualquer personagem de conto de fadas faria – pegou no namorado e viajou pela Escócia de cavalo e vagão, para se juntar a uma comunidade de músicos prometida pelo amigo e também compositor Donovan.
A sua fuga inspirou o que a puxaria de volta. Durante a sua viagem, Vashti escreveu, escreveu e escreveu. E escreveu tanto que acabou por acabar com um punhado de canções que interessaram uma editora em particular – Phillips Records. Esse mesmo punhado de canções acabou por dar origem ao seu primeiro de três discos, Just Another Diamond Day.
O disco de estreia de Vashti Bunyan parece espelhar a misteriosa personagem que o medrou: humilde, de voz mansa, desliza pelos ouvidos sem grandes complicações ou extravagâncias. Mas a sua beleza prende-se a nós, não nos deixa ir, puxa-nos para dentro desta fábula que ela nos conta e parece querer que dela façamos parte. As músicas tombam suavemente umas nas outras, todas compostas com a inocência hábil de crianças cujo interesse por fadas e monstros se abate com a entrada na vida adulta. As melodias, de uma simplicidade melindrosa conseguida apenas por alguns, cavalgam sob o olhar atento das letras, pequenos poemas doces que nos contam histórias filmadas através do olhar distraído de quem conseguiu nunca crescer. E o fio condutor é, claro, a voz soprada e peculiar de Vashti – uma voz como poucas outras, com um sabor único, capaz de nos adormecer em sonhos de prados verdejantes escoceses.
Talvez o mundo não estivesse pronto, talvez andasse distraído com os barulhos de lá de fora, e não ouviu Vashti a chamar-lhes baixinho dos seus pés. O álbum nasceu para as mãos de críticas atentas e generosas, para ser rapidamente deixado de lado a criar pó, com pouca ou nenhuma audiência interessada. Desanimada, Vashti resignou-se com o que apenas podemos imaginar: uma dor calma e sossegada, como sempre cantou. Regressou à sua pequena cabana na Escócia e passou os próximos trinta anos a criar os seus três filhos. Sem desconfiar que, com o volver do tempo, o número de curiosos que tropeçavam no seu trabalho e o ouviam com ouvidos de ouvir crescia de dia para dia. Nas costas de Vashti, Just Another Diamond Day tornara-se um álbum de culto.
Chegou o ano de 2000. Just Another Diamond Day recebeu uma reedição generosa, influenciando uma geração recém-nascida de artistas de folk, como Devendra Banhart e Joanna Newsom. Foi uma carta escrita pelas mãos do primeiro, pedindo conselhos à velha anciã, que a catapultou novamente para o mundo da música. Em 2002, foi convidada por Glen Johnson, da fama de Piano Magic, para doar a sua voz à sua música “Crown of the Lost”. Estava calada há mais de trinta anos.
Em 2005, surgiram colaborações com Devendra e também os recém-chegados Animal Collective. E Vashti reuniu a coragem necessária para se meter à frente do microfone sozinha, sem convites e desculpas, e despejar a alma, agora que tinha quem a bebesse; no mesmo ano, o mundo viu nascer Lookaftering. O seu segundo disco e o primeiro em 35 anos.
Pouco mudou. Não foram os quase quarenta anos longe dos estúdios que enferrujaram o talento de Vashti, que regressa de papel e caneta na mão assinando onze ambiciosos temas, que pouco ou nada divergem do que já nos tinha habituado no seu primeiro disco de originais: canções simples, de uma beleza que faz estremecer quem as ouve, de letra de conto de fadas, de melodias presas ainda nos agora longínquos passeios de cavalo pela gélida Escócia. No entanto, Vashti conseguira cumprir a árdua tarefa de se manter fiel à sua promessa original, conseguindo mesmo assim inovando e evoluindo na sua composição, com melodias mais arrojadas, arranjos mais sofisticados e dando claros sinais de crescimento durante os anos em que a música lhe fechou as portas. Passados apenas nove anos (um intervalo que se afigura colossal para certos músicos, mas, tendo em conta o espaço colossal entre os dois primeiros discos de Vashti, para ela é pouca coisa), Vashti lançou o seu terceiro e último disco – Heartleap.
Se Just Another Diamond Day é a estreia falhada que singra com a sobrevivência resistente ao passar dos anos e mais tarde se ergue se dos destroços com um êxito surpreendente, Lookaftering é o difícil mas conseguido disco que marca uma nova fase de vida de Vashti – esta entrada de pés tortos no século XXI, saltitando para o lado dos seus contemporâneos mais novos e ágeis com uma facilidade surpreendente – Heartleap é a despedida. É a terceira vez que repete a façanha – as mesmas melodias de caixinha de música, as mesmas letras melancólicas e suspiradas, a música que o novo milénio acariciou, e, acima de tudo, aquela voz que nunca esquecemos, aquela voz tão única, doce e triste ao mesmo tempo, voz que imaginamos terem as ninfas e musas sobre as quais lemos nos livros mas nunca sonhamos ouvir, que, com o passar dos anos, nos soa um bocadinho mais cansada, mais partida, mais frágil, mas que nunca se apaga – mas desta vez, o sabor é diferente. Já não ouvimos Vashti com a estranha tristeza sentida com a qual ouvimos Just Another Diamond Day, suspirando os azares dos músicos que fazem música que não é ouvida e que, mesmo nunca tendo pegando num instrumento, acaba por ser uma história que sempre nos toca. Nem com a alegria que ouvimos Lookaftering, um triunfo orgulhoso de quem vê à distância uma corça ferida a reerguer-se nos cascos e a vencer as setas que lhe pareciam trespassar o corpo. Ouvimos Heartleap com a tristeza de quem fecha o livro que acabou de ler mas não quer. No entanto, compreende que as palavras estão gastas, já não há mais para dizer. Que não foi um fim trágico como os que marcam abruptamente as vidas e carreiras de tantos músicos e artísticos, mas um fim que não podia deixar de ser, um fim de fábula. E de Vashti nos despedimos, mas nunca conseguimos fazer batota e cismar sobre este conto que ela nos conta – esta criatura estranha e fascinante, perdida num século longínquo e que acorda de um sono profundo numa época que não é a sua, mas na qual todos decidiram finalmente ouvi-la.