Comecemos por tirar o chapéu a Hanni El Khatib pela coragem de lançar um disco com 19 músicas. Podia valer só por esse arrojo na forma, mas não, Savage Times terá longa vida porque é composto por mãos cheias de grandes canções.
Partindo da sua matriz garage-rock, o músico norte-americano – com origens nas Palestina e Filipinas – percorre vários ramos da árvore genealógica com raíz no delta do Mississippi e, embora fosse natural no meio de tanta canção, não deixa nunca a qualidade baixar.
Savage Times, o álbum, é a soma dos 5 EPs com o mesmo nome que Khatib lançou entre Abril e Dezembro de 2016, aos quais juntou ainda quatro temas inéditos. E apresenta-nos este álbum duplo, com 19 canções e 59 minutos de duração, que quase esteve para não ser disco. Depois de três álbuns propriamente ditos, Hanni El Khatib quis subverter a sua forma de compor e editar música. Continuou a ir para o estúdio diariamente, mas optou por lançar as músicas assim que as compunha. Quis ter outro tipo de controlo sobre as suas composições, em vez de andar às voltas com grupos de músicas que coubessem num álbum, ia para estúdio, escrevia no dia uma canção sobre o que estava a sentir nessa manhã, no dia seguinte a música estava cá fora, deixava de lhe pertencer.
Mas em boa hora decidiu compilar tudo, permitindo-nos um mergulho amplo na sua arte. Hanni El Khatib – que pertence a uma nova geração de porta-estandartes do rock embebido em blues e soul, acompanhado por Gary Clark Jr. e Curtis Harding, descendentes de Lenny Kravitz e Jon Spencer, por exemplo – apresenta-se agora num excelente momento de forma.
Se no início de carreira Khatib mostrava mais a sua veia de skater de calças justas, às voltas com o garage-rock, agora presta maior homenagem aos seus ídolos e faz uma boa conjugação desse rock mais cru com a ginga dançante que pediu emprestada à soul, ao funk e às vezes ao disco. Canções como “Paralyzed”, “Come Down”, “Gun Clap Hero” ou “This I Know” são perfeitos exemplos disto, facilmente audíveis debaixo da bola de espelhos.
“Baby’s Ok”, “Mondo and His Makeup” ou “So Dusty” estão cá para lembrar que se pode tirar El Khatib da garagem, mas não se tira a garagem de dentro de El Khatib.
No meio de tanto frenesim rockeiro, há momentos de pura doçura, como “Miracle” ou “No Way”, conduzidas pela guitarra acústica.
No meio desta diversidade instrumental, há uma uniformidade extrema, que vem da voz de El Khatib. Mesmo nas mais suaves, ele faz do seu canto uma arma, que dispara tiros lancinantes, grita sem berrar, a voz impõe-se e encosta-nos à parede.
E não é caso para menos, que este é o disco que melhor representa os dias que vivemos. «Savage Times for the savage men», canta El Khatib no tema-título. E aqui vai-se do selvagem que pára o carro em cima do passeio ao selvagem que degola no deserto. Contra esta selvajaria, luta-se de guitarra em riste e voz afinada.