Quando ouvi pela primeira vez o nome Guta Naki pensei que se tratava de mais uma daquelas comidas japonesas esquisitas que se comem com gengibre e wasabi. Depois descobri que se tratava de uma banda mas continuava a imaginá-los de outras latitudes, talvez de Tóquio ou Nagasaki. Até que soube que eram afinal da minha prosaica Lisboa. Ouvi-os e percebi que a minha intuição tinha afinal razão de ser: são exóticos, sim senhor, mas de um exotismo puramente estético. Saboreemos então esse fruto tropical chamado Guta Naki.
São um trio. Três amigos que tocam juntos desde a adolescência. Já colaboravam em projectos anteriores mas foi em 2008 que ganharam esta forma e nome esquisito. Dizem que se chamam assim para render homenagem aos primeiros fãs da banda: a gata Guta e a cadela Naki, espectadores assíduos dos primeiros ensaios. Em 2009 partem à conquista dos primeiros fãs bípedes e com sucesso: venceram o Restart Resound Fest, bela rampa de lançamento para no ano seguinte lançarem o seu homónimo álbum de estreia.
Assinam pela Meifumado Fonogramas editora independente do Porto conhecida pela sua irreverência e bom gosto (o Peixe dos Ornatos Violeta e os Mind da Gap não me deixam mentir). Fiquei fascinado com esta editora quando descobri que se apresentam assim: “A Meifumado continua a cagar na precaução… Todas as convenções implícitas de uma editora são orgulhosamente ignoradas. Venham ver o barco a afundar!” Desejo o maior sucesso a esta rapaziada tão espontânea e bem-disposta.
Acabadinho de sair do forno está o apetitoso segundo álbum Perto Como, agora menos electrónico e mais orgânico do que o primeiro. Experimentem pôr numa moulinex os xx e a Luísa Sobral e terão uma razoável aproximação ao som do disco (a simplificação é, evidentemente, grosseira: os Guta Naki são muito mais eles próprios do que qualquer outra coisa). No single de apresentação “Ainda Não Sei”, cantam “eu não sei em que hemisfério vive a minha vida” mas a ambiência tropical e selvagem agora dada a este disco impõe o hemisfério sul como resposta. As pistas são muitas: os risos de uma mulher “primitiva” em Ikari (roubados ao filme “A Guerra do Fogo); o lago no meio da selva que vemos na capa; o flirt com a bossa nova em “Ainda não sei” e “Tu Nunca”; o sintetizador exótico à Duran Duran de “Ainda Não Sei”; a elegia ao amor selvagem em o “Meu Amor é Índio”.
Condizente com o espírito tropical do disco, a maior parte das canções são quentes e festivas. Contudo, qualquer coisa de muito terrível deve ter acontecido no decurso das suas viagens exóticas para no final do disco haver duas canções dolorosamente sombrias. Uma má viagem com o ayahuasca psicadélico da Amazónia? Uma má experiência com uma tribo canibal? Não o sabemos. Sabemos apenas que “Todas as Tuas Memórias”, com a sua letra distópica e os seus sintetizadores agonizantes, não destoaria em nenhum dos álbuns de Bowie da trilogia de Berlim; e que a música sombria de “Zeferino” retrata um amor obsessivamente doentio: “o teu amor é uma espécie de demência e o meu mal não tem cura/minha língua é chibata/bate, bate, Zeferino”…
Mas para perceberem um pouco melhor este crime exemplar, nada como vos apresentar o cadastro individual dos principais suspeitos.
Cátia Pereira tem uma voz do outro mundo, daquelas que só aparecem de 76 em 76 anos. Dar-lhe um microfone para a mão é, pura e simplesmente, uma redundância: sem nunca esforçar a voz, soa sempre cheia e possante, mesmo que apenas sussurre, o que me faz levantar por vezes a suspeita de que em pequena Cátia tenha engolido inadvertidamente um altifalante. Se não acreditam, ouçam “Ana” (baseada num texto de Maria Gabriela Llansol), onde canta quase à capela, só com percussões a acompanhá-la. Põe-te a pau, Márcia, tens aqui uma concorrente lixada. É também Cátia que escreve o grosso das letras, driblando as palavras com a mestria esperada de quem tem formação em literatura (quem mais na Pop portuguesa cita Maria Gabriela Llansol?). E agora, neste novo disco, toca também guitarra acústica no seu jeito bossa nova, um dos segredos pelos quais Perto Como é tão orgânico.
Segue-se o guitarrista Nuno Palma, que também dá uma perninha nas teclas e nas programações. A guitarra é minimal e límpida, como um robot a assobiar. Programador Web durante o dia, programa também deliciosos loopings musicais durante a noite, que nos fazem lembrar os jogos de Spectrum da nossa infância.
Last but not the least: o baixista Dinis Pires. No primeiro disco não havia bateria (toda a percussão era electrónica), pelo que Dinis, único humano então na secção rítmica, ficava numa posição ingrata: se houvesse merda na marcação do tempo era a ele a quem iriam pedir contas. Mas Dinis foi sempre irrepreensível – um relógio com quatro cordas – pelo que esse momento nunca chegou. Seja como for, agora que tem a companhia de bateristas de sessão (no disco e nos concertos), o baixista dorme mais descansado.
Dia 15 de Fevereiro os Guta Naki vão dar no São Jorge o concerto de apresentação de Perto Como. Façam um favor a vós próprios: não percam nem por nada a possibilidade de provar, em primeira mão, Guta Naki. A fruta tropical mais deliciosa deste inverno.
Guta Naki | “Ainda Não Sei” from Meifumado Fonogramas on Vimeo.