No final de 2000, os Ornatos Violeta anunciam o fim da banda, deixando uns poucos milhares de fãs apaixonados órfãos dos seus artistas preferidos. Nos anos seguintes, não houve nada senão silêncio da parte de Manuel Cruz, força motriz por trás dos Ornatos e provavelmente o mais interessante compositor de canções da sua geração, como haveríamos de constatar com o passar dos anos.
Mas o silêncio não significava inacção, sobretudo para um artista tão impaciente e inquieto como Cruz. O projecto seguinte, Pluto, surge em 2002, assente em boa parte do histórico chassis dos Ornatos: Manuel Cruz e Peixe, o guitarrista.
O disco de estreia, e infelizmente único disco até agora, dos Pluto, é editado em 2004. Bom Dia vê a luz com esta saudação de começo, de início de ciclo, de vida nova. Apesar disto, não é um álbum luminoso, matinal. A própria capa remete-nos para o espaço, a eterna noite das estrelas. E é de noite que falamos, de pensamentos que nos assaltam quando o cansaço do dia já fez o seu estrago, quando a fragilidade da almofada nos faz pensar naquilo que não queremos.
A própria energia do disco é feroz, violenta, de ataque ou até, quem sabe, de vingança. É o som de alguém que tem algo a provar, que ainda é relevante, que ainda tem muito para dar e para dizer ao mundo. É o som de Manuel Cruz e os seus fantasmas, como sempre, claro, mas aqui sem barreiras, sem disfarces, sem medo, ou atacando raivosamente esse mesmo medo.
Se os Ornatos nos conquistaram com o seu pop/rock idiossincrático, nos Pluto temos rock puro e duro.
Veja-se “Entre Nós”, que abre o disco. Uma sonoridade de raiva contida, numa guitarra quase grunge, com Cruz a dissecar, como só ele sabe, sobre relações e desencontros. “Sexo Mono” segue-se com início num riff vintage, quase Nirvana, para ir subindo de intensidade com um teclado discreto colheita Faith no More e a guitarra de Peixe, oscilando entre o delicado e o tresloucado, na mesma música.
“Segue-me À Luz” é outra fortíssima malha rock, feita de existencialismo, dúvidas e temores. “O 2 Vem Sempre Depois” começa com um riff de guitarra quase cabaret, sendo uma das várias grandes pérolas rock do álbum. “A Vida Dos Outros” é outro clássico, e ainda vamos na quinta música do disco! Um som claustrofóbico, acelerante, rock em estado puro movido a guitarra e bateria, numa letra sobre segredos e mentiras com a qual necessariamente nos identificamos.
“Convite” é o primeiro momento realmente calmo da rodela, e um tema que poderia, este sim, ter feito parte de O Monstro Precisa De Amigos, o último disco de originais dos Ornatos Violeta. Ouvimos aqui Cruz no seu mais exposto e mais sensível. “Prisão” lembra “Tanque”, desse disco, e é um assalto rock, poderoso do princípio ao fim, sobretudo a caminho deste.
Segue-se “Lição De Adição”, 2:07 minutos de rock sempre a rasgar, antes de “Líderes & Filhos Lda”, uma das canções mais complexas do disco. Há ainda tempo para “Só Mais Um Começo”, um portento de guitarra e bateria, com Cruz a mostrar todo o seu naipe de truques e capacidades. Este tema foi, justamente, um dos singles de Bom Dia, e devia ser matéria de conhecimento obrigatório para quem quer dizer seja o que for acerca da música portuguesa.
A caminho do fecho do disco temos ainda “Bem-vindo A Ti”, talvez o momento mais pop deste conjunto. O álbum fecha com “Algo Teu”, uma delícia de balada, feita de dor, arrependimento, cansaço e desilusão. Manuel Cruz, sussurrante, acompanhado apenas por um discreto piano, menos de dois minutos, mais uma daquelas mini-pérolas que o homem vai largando pelos seus discos, como “Chuva” ou “Letra S”, do disco de estreia dos Ornatos, temas que poderiam fazer a carreira de muitas bandas que por aí andam, mas que na pena desta génio podem ser “desperdiçadas”, assim, num inacreditável understatement que nos faz desejar que ele tivesse desenvolvido a canção até aos quatro minutos da praxe. Não é preciso, não neste universo.
Bom Dia é um disco imperdível e obrigatório, e não apenas para os fãs de Ornatos Violeta. Onde Manuel Cruz junta aos predicados que já trazia dessa banda uma pica e uma energia rock que nos faz apetecer ir para trás do volante e conduzir, rápido e alto. Com uma vantagem, que distingue os bons dos realmente grandes: tudo é feito com a sapiência pop de uma canção bem construída, viciante, implacável. Considero, sem qualquer favor, que este disco está pelo menos ao nível da produção da sua banda de origem, e em certos aspectos até ultrapassa tudo o que foi feito até então.
Anos mais tarde teríamos Foge Foge Bandido, mega-trabalho a solo feito com a ajuda de um grande colectivo, e que cimentaria ainda mais o estatuto à parte deste grande autor. Isto antes da investida dos mais recentes Supernada, que mantêm o mínimo olímpico mas que ficam algo aquém da singular obra feita antes.
Bom Dia é o meio, entre o que fez e o que faria. Mas é um produto acabado, que vale por si mais do que por qualquer nostalgia. Um disco imenso, um dos melhores das últimas décadas na música portuguesa, e que merecia ser mais conhecido e celebrado.