Nos Estados Unidos, existe o chamado southern rock, todo ele orgulho das suas raízes sulistas. No seu auge, nos anos setenta, bandas como os Allman Brothers e os Lynyrd Skynyrd conquistaram uma enorme popularidade, não só por serem músicos incríveis, mas também porque geravam uma forte identificação cultural nas gentes do sul, há muito ressentidas com a irritante sobranceria dos yankees.
Em Portugal, com os nossos brandos costumes, nunca existiu nada de semelhante. Mas deveria haver, pois há muito pedantismo indie na capital do império. É conhecida a passagem de “Os Maias”, quando a personagem João da Ega, alter-ego do próprio Eça, desabafa: “Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!” Tudo bem que hoje já não existe, entre o campo e a cidade, o fosso cultural de outrora: para o bem e para o mal, a net e a tv tornaram o país mais homogéneo. Existem contudo novos fenómenos de exclusão, como a desertificação do interior, sempre selada com a abjecta cumplicidade do poder político. A indústria musical não é excepção, também ela barricada em Lisboa e demais litoral. Cento e trinta anos depois, o resto continua a ser paisagem.
E, contudo, uma aldeia gaulesa resiste. A Capote Música, sediada em Évora, acreditou que era possível romper o cerco, e afirmar uma cultura local. Se existem bons músicos no Alentejo, bons designers, bons dinamizadores, porque raio estes não haveriam de se organizar e criar as suas próprias estruturas de produção e distribuição cultural? Não será fácil a vida de uma pequena editora, independente e periférica ao mesmo tempo; mas esta malta sabe, por experiência própria, que sem este tipo de alicerces é a própria sobrevivência que está em causa. É difícil? É desgastante? É quixotesco? Será tudo isso. Mas nada tem mais força do que o que tem que ser.
É neste contexto de resistência que nasceu o mais recente filho da Capote Música: o grande álbum de estreia dos Bicho do Mato. Com tudo o que dissemos, haveis porventura formado expectativas erradas sobre o disco, imaginando langorosos cantos alentejanos. Nada disso. Há muita influência anglo-saxónica em A Vingança do Bicho do Mato, e, em vez de Janita Salomé como convidado especial, é Sequin, a musa da electrónica, que nele assoma. A conclusão só não é óbvia para os maus etnomusicólogos: a cultura do Alentejo nunca foi estanque no tempo, ou isolada do mundo, mas sim mutante e promíscua, como este saboroso disco.
Se há, de facto, Mississippi na guitarra slide de Zé Peps (sempre pincelando de blues eléctrico os alicerces acústicos das canções), a viola campaniça de Tó Zé Bexiga é puro Alentejo: trigo em vez de algodão, sobreiros em vez de magnólias, migas em vez de hambúrgueres. O fado de “Mosca sem Asa”, e os ritmos populares de “Pato Psicopata” e “A Vingança do Bicho do Mato”, vão no mesmo lusitano sentido. Mas onde o coração do Bicho do Mato mais bate em português é na sua linguagem popular, satírica, quase grotesca, uma espécie de cantigas de escárnio e maldizer para a pós-modernidade. Numa altura em que Lisboa se transforma cada vez mais em postal para turistas, enfeitando-se por todo o lado com patéticos estrangeirismos, o português vernacular de Daniel Catarino é por demais bem-vindo.
Não será também fortuito o lugar-conceito que a fábula ocupa no disco: treze canções, treze animais, cada um carregando às costas os vícios e virtudes dos homens (mais vícios do que virtudes, que os podres costumes da nação corrompem sempre o que há de melhor em nós). Quem leu em miúdo as histórias do Salta-Pocinhas, saberá o quanto a fábula pode ter de tradição oral, jocosa e picaresca. É como se a bicharada de Aquilino Ribeiro tivesse fugido dos seus livros e houvesse encontrado abrigo neste disco: o mesmo imaginário rural e burlesco, a mesma inteligente subversão.
A Vingança do Bicho do Mato é, contudo, muito mais do que as suas grandes canções. É a história da música popular a fazer-se. O southern rock português acabou de nascer.