Vamos fazer um exercício: Imaginem as vossas bandas favoritas, aquelas que mais ouvem, aquelas que mais vos marcaram. Imaginem-nas num palco. Em qualquer um que gostem ou que acham que seria/é o sitio ideal para tocarem. Uma multidão a encher a sala ou só vocês, como preferirem. Começam a tocar. Instrumentos, letras, luzes, movimentos, danças, fumo. Tudo a que tem direito. O Ian a dançar que nem um boneco insuflável, como sempre. O Jim de tronco nu, descalço, embrulhado em panos e lenços. O Kurt e a sua camisa de flanela, com o cabelo pegajoso a pingar-lhe para a cara. O Mick a pavonear-se num qualquer macacão de cor berrante. Quantos de vocês imaginaram primeiro ou deram mais destaque no vosso cenário hipotético ao timoneiro, ao frontman, ao vocalista? Acredito que muitos. Porque será? Porque é que a figura do “homem-estrela” quase sempre se torna a personificação de uma banda inteira, de um género musical inteiro. Quase? A resposta acredito ser simples: apesar de todos termos as nossas razões muito pessoais (não fosse do tão pessoal mundo da música que estivéssemos a falar) para que isto aconteça, mas há fatores transversais que são incontornáveis – Carisma. Irreverência. Coragem. Entrega. Paixão – Amar o que se faz e entrega-lo a todos o que gostem tanto como ele.
O vocalista é a boca do grupo, o escape, a cara. Nunca se perceberá ao certo porque assim o é mas é. Imaginar bandas como Joy Division, Doors, Nirvana ou Stones sem o seu homem forte é quase impossível. Nos grupos em que este fenómeno se dá, é impossível dissociar uma coisa da outra. Não que os músicos sejam maus ou desinteressantes, nada disso, basta pensarmos em Peter Hook, Ray Manzarek, Dave Grohl ou Keith Richards. Mas há qualquer coisa que os liga, que os une e os eleva a um patamar superior. Talvez música boa, pura e simples não chegue para nos conquistar. Falta uma ligação palpável, uma personificação de tudo aquilo que um conjunto de notas pretende transmitir. Acho que é isso que explica estas personagens.
Nos últimos tempos, a noção do lead singer deificado tem estagnado. Talvez o tempo que passou ainda não os tenha rotulado dessa forma, mas essa figura já não é o que era. Quem é o David Bowie, o Lou Reed, o Iggy Pop dos dias de hoje? É difícil apontar assim de repente (falo dos que são produto da sua criação musical, não os que são produto do marketing e dos forcings teatrais). Destaca-se um Mac Demarco, um Alex Turner, um Josh Homme ou, e finalmente chegando ao motivo principal da existência deste texto, um Samuel Herring que, para quem não esteja a associar a cara à banda, é o vocalista dos Future Islands. Este texto é sobre ele(s) e o seu álbum mais recente, Singles.
Lançado pouco depois do início deste nosso querido 2014 (Março), Singles chegou ao de leve, sem grandes fuzués nem confusões. Tudo com calma e ponderação até que houve a atuação no talk show americano de David Letterman. Num cenários simples, com holofotes azuis a criarem o clima, o concerto, quer dizer, showzaço, que o quarteto deu, catapultou-os para uma estratosfera que até à altura nem tinha sequer cheirado. O vídeo tornou-se viral, os grandes concertos multiplicaram-se e assim, desta forma tão simples, uma banda com 11 anos de existência quase obscura, atingiu o nível de reconhecimento que merece.
Falamos então de um robusto conjunto de electropop/synthpop de cariz singular. A instrumentalização é bastante simples e maioritariamente inorgânica. Os sintetizadores ofuscam as outras secções musicais com uma toada muito leve, etérea quase, sempre bastante alegre e ritmada, fazendo algumas vezes lembrar o mundo mágico dos Beach House. A par dos sintetizadores, temos um baixo muito relevante, groovy, que contribui bastante para toda a construção melódica. Joga muito bem não só com o som eletrónico como com a bateria simples que está lá sempre como pano de fundo. É frequente também, se bem que não com tanto destaque como os outros elementos, uma guitarra espreitar pelo meio de tudo isto com muita calma e sem grandes devaneios. Depois há a voz….
Quase mais complexa musicalmente do que a instrumentalização geral, a voz, a meu ver, é o fator decisivo deste conjunto Norte-Americano. Samuel é dono de um vozeirão incomparável que traz reminiscências de um Joe Cocker no seu auge. Forte, rugosa, profunda e completamente ensopada em emoção, o som que vem deste senhor, como falei no início deste texto, é a cola que une e eleva tudo o que é produzido. Saltamos de um momento lindo, onde uma meia voz embaladora mas incrivelmente dançante nos fala de sonhos românticos (“Dream of You & Me”) para um grunhido agressivo, violento, quase que num screaming de fazer inveja a muito vocalista de Death Metal, exorciza todos os males de um desgosto amoroso (“Fall from Grace”). Incrível.
Sendo o nome do álbum Singles, seria de imaginar que quase todas as faixas que o compõe fossem cada uma mais catchy que a anterior. Não é bem assim, mas é quase. O início do disco é arrebatador: o primeiro single, “Seasons (Waiting on You)”, põe toda a gente que o oiça a dançar de joelhos e costas dobradas para a frente. Grandiosa combinação, a do baixo dançante e da eletrónica feliz, viva. “Spirit” é a música que se segue, plena de atrevimento e sorriso maroto. São vários os restantes pontos altos, merecendo destaque as saudosas e melancolicamente reconfortantes “Back in Tall Grass” (sabe a férias de verão e fins-de-semana no campo) e “A Song for Our Grandfathers” (muito forte). Fecha-se o capítulo dos destaques com “Like the Moon”, sempre desgostosa e de coração partido.
De um modo geral, estamos perante um trabalho excelente de pop crescida, com substrato. Todo o álbum é uma viagem pela efervescência emocional de Herring (letrista do grupo, para além de voz) e é por isso mesmo que tudo isto que se ouve ganha o peso que tem. Voltamos à ideia do vocalista superstar e do porquê de assim o ser: como personificação de tudo o que se sente através da música construída, esta personagem tem o complicado trabalho de ser a forma física das emoções que se sentiram quando a pauta estava em branco e ainda faltava afinar os instrumentos. A paixão, o amor, a saudade, a alegria, a tristeza, tudo isso, é expresso através de uma voz que nasce de várias. Samuel faz isso como ninguém. Ainda falando do showcase no programa de David Letterman, a razão pela qual toda a gente nunca mais se esqueceu dele prende-se com o simples facto de que, quem assistiu àquilo, percebeu que tudo o que era dito, tudo o que estava ali à vista era genuíno. Se não fosse não havia a dança esquizofrénica, os screamings espontâneos, as chapadas no peito, os saltos, o olhar maníaco, tudo isso…. Não seria nada se não fosse verdadeiro. Essa é a ideia final que gostava de deixar presente não só sobre Singles, mas sobre os próprios Future Islands: a sua música, para lá de bonita, contagiante, feliz e rica é honesta. Isso é raro de ter hoje em dia.
Não quero comparar Future Islands com os outros colossos que fui mencionando ao longo desta review, seria impossível e um bocado parvo de fazer. Com toda esta verborreia musical quero apenas tentar dar uma explicação, partindo deste disco e deste grupo, para o porquê de adorarmos homens ou mulheres que se tornam a cara das nossas bandas favoritas. Vale o que vale, mas não deixa de ser um tema interessante. Pensem por vocês, procurem uma resposta, questionem-se sobre isso. A sério, é giro tentar perceber estas coisas. Enquanto fazem isso vou aprumar a coreografia que Samuel apresentou ao mundo para que em Outubro possa fazer jus ao quanto esta música significa para mim, se bem que seja através de passos de dança apalermados mas… Sinceros.