Father John Misty era Josh Tillman, foi baterista dos Fleet Foxes. Agora, descobriu a sua vocação: é um líder carismático, narcisista q.b., de uma ótima banda que lhe dá todo o espaço para brilhar. O problema? Ainda não há canções de proa suficientes para amparar duas horas de concerto.
Com três álbuns de originais editados desde 2012, Father John Misty aterrou no Coliseu dos Recreios na noite de segunda-feira para se consagrar definitivamente como artista de culto em Portugal. Conseguiu-o. Na reta final, largou a personagem e encarnou o homem – dialogou com a plateia, contou piadas, deixou uma fã afagar a sua (estupenda) barba. A noite era a última da digressão europeia de apoio a Pure Comedy: os devotos saíram rendidos, os incautos – como este que estas linhas escreve – reconhecem o talento e a pinta, mas ainda não foi desta que se renderam em absoluto.
Por partes: tudo no espetáculo é inatacável, reconhecemos. A banda é fantástica (já lá vamos), a iluminação é do melhor que se tem visto, jogando de forma inteligente com o repertório, o som esteve imaculado, Father John Misty é um intérprete carismático, dono de uma ótima voz, respeitável dançarino, homem garboso que faz com que as miúdas queiram estar com ele e os homens queiram ser como ele (e alguns queiram estar com ele também).
O arranque da noite foi certeiro: logo na primeira meia hora há “Pure Comedy” (a abrir), “Total Entertainment Forever”, “Nancy From Now On” e “Chateau Lobby #4”. No total, foram disparadas perto de 25 canções, e aí reside o calcanhar de Aquiles disto tudo: nem tudo está ao mesmo nível, longe disso, e o concerto desta segunda-feira oscilou vezes demais entre o sonho e o sono – normal é que, com três discos apenas, nem todo o material esteja ao mesmo nível. Menos normal talvez seja a gestão do espetáculo, demasiado longo e permissivo a momentos menores.
A reta final foi, também, imaculada. A partir de “Bored in the USA” foi sempre a subir, e “I’m Writing a Novel”, pouco antes do encore, foi o melhor momento da noite: banda de seis elementos e Misty a deambular pelo rock, blues, pela tradição americana, com ginga, nervo, velocidade. Father John Misty podia e devia recorrer mais à sua banda e ser mais vocalista do que intérprete a solo – não que o faça mal, o músico tem mais do que tarimba para brilhar sozinho; o problema é que musicalmente tudo isto ganha quando a banda é livre, quando há uma equipa com um capitão solidário, ao invés de um jogador (craque, é certo) individualista e pouco entrosado com os demais.
Father John Misty é um óvni. Não sabemos o que nele é verdade, o que é pose, e garantidamente não está aqui ainda um músico com repertório suficiente para voos de longa escala. Mas recorrentemente vem-nos à cabeça Nick Cave, pelo carisma, uns The National, pela empatia com o público, um Ryan Adams, pela qualidade de algum repertório. Father John Misty ainda não ombreia com estes gigantes – mas mais um punhado de bons discos e uma melhor gestão de repertório ao vivo, e teremos um monstro.
No arranque da noite, e já perante um Coliseu muito preenchido, a norte-americana Weyes Blood mostrou ser bem mais que primeira parte ornamental: as suas canções delicadas e pontualmente intempestivas foram do agrado da plateia – os aplausos só não foram maiores porque havia alguma contenção a fazer para receber, minutos depois, o artista da noite.
Fotografias: Inês Silva