Um disco de estreia de jazz nacional que é uma bomba de groove movida a guitarra eléctrica
E, de repente, um ovni daqueles mesmo bons. Há discos e artistas assim, que quando metem a cabeça realmente de fora nos fazem pensar que andávamos demasiado distraídos. Afinal, onde andava esta moça com o nome curioso de Eugénia Contente?
Andava por aí, na verdade. Nascida nos Açores há pouco mais de 30 anos, Eugénia pegou na guitarra pela primeira vez aos nove. A primeira inspiração foi o rock e os seus guitar gods, mas o caminho começou a alargar-se quando o jazz se insinuou e a conquistou. Acabou por vir para Lisboa estudar Arquitectura, sempre de guitarra atrás. Horas e horas de prática, por entre as aulas que pouco lhe diziam, as noites passadas a ver concertos no Hot Clube. Em 2017, já a trabalhar num escritório, inscreve-se finalmente nesta mítica escola e nunca mais olhou para trás. Desde então, Eugénia tocou, como sempre fez. Tocou em bandas, nos discos de outros, no Hot, em todo o lado. Para quem anda no mundo do jazz, o seu nome não é novo. Para nós era. Que parvos que éramos.
O jazz sempre foi território de partilha, de inserção numa tradição, de tocar e reinventar o reportório dos outros. Ora no ano da graça de 2023, Eugénia sentiu-se confiante para vincar o seu nome e gravar, juntamente com os cúmplices Gabriel Salles Silva (baixo) e Luis Delgado (bateria), do disco de estreia do seu Eugénia Contente Trio: Duckontente.
Aquilo que começa por nos impressionar neste trabalho é a inegável destreza técnica. Não somos partidários de que a técnica se sobrepõe à emoção, mas porra, há coisas que nos fazem parar e prestar atenção. Sobretudo porque, aqui, as malhas implacáveis da guitarra de Eugénia habitam num colectivo cheio de groove e energia.
Este não é um disco de jazz clássico, nem redondinho nem avant-garde, nem um trabalho que só os apreciadores de jazz podem gostar. É sobretudo uma celebração da música como arte de prazer, de pica. E pica este Duckontente tem para dar e vender.
Ao longo nove temas e pouco mais de meia hora, o trio alterna entre a alta velocidade e momentos mais mellow, sempre com um gostoso funk latente (ouça-se “Squawking Chicken”, por exemplo). Mas há também lugar para a límpida placidez de “Interlindo”, um interlúdio lindo, de facto.
Talvez possamos, se quisermos muito, apontar que aqui e ali sentimos que estamos próximos da exploração de uma exercício, por exemplo um riff que é trabalhado numa jam, o que se pode tornar algo esquemático em algumas músicas. Mas isso pode entender-se facilmente num registo de estreia, e é temperado com outros temas mais “orgânicos”, mais soltos.
Se o destaque mais óbvio vai para a bomba energética de “Rubber duck”, toda ela funk a mil à hora, chamamos a atenção para a curiosa “Era para ser uma balada”. De facto, começa assim, bonita e lenta, mas vai crescendo, ganhando fome, e acaba numa verdadeira explosão de jazz-rock. Também o fecho com “Django Avishained”, banda sonora imaginada para uma cóbóiada de Tarantino, mostra um lado mais amplo, menos de exercício técnico e mais de exploração do que pode ser uma “canção”, mesmo no registo jazz.
Para já, Duckontente conquistou-nos sem margem para dúvidas. Temos aqui uma música de mão cheia, uma bombada de ar fresco e electrificado, feito de groove e energia. Do alto dos seus 31 anos, Eugénia tem razões para estar contente e muito caminho pela frente. Apostamos que quando se soltar ainda mais e explorar toda a música que lhe está no sangue, continuaremos a ter frutos bons, por largos e felizes anos.
Se houver justiça, este pato contente terá lugar entre os discos nacionais mais celebrados em 2023.