Um palco sem nada a não ser um micro, uma cadeira e um leque de pedaleiras espalhados pelo chão. Tão simples quanto isso. Um homem de barba com uma guitarra e uma cerveja na mão. Tão simples quanto isso. Foi com este cenário à minha frente que ouvi o Rui Carvalho pela primeira vez.
De uma forma solene mas descontraída, o homem de barba senta-se na cadeira, pousa a cerveja e ajeita o micro e pega na guitarra enquanto procura as pedaleiras com os pés. Este seria o momento onde o básico se transformava, a um ritmo alucinante ,num complexo de música que a partir daí não deixei mais de procurar. Mais tarde ou mais cedo tinha de entrevistar este Filho da Mãe. Mais tarde do que cedo acabei mesmo por conseguir.
Numa tarde cinzentona, esperámos (eu e o caríssimo Altamontiano Francisco Fidalgo) “pelo gajo careca de barba”. Foi com esta imagem mental que íamos inspecionando os arredores daquela esplanada em pleno Jardim da Estrela. “Lá está ele” / “Já ai vêm.” Soltamos para disfarçar aquele friozinho na barriga, característico de quem conhece quem admira. Apertos de mão e cumprimentos ultrapassados… vamos lá ao que interessa: “São duas Imperiais, por favor.”- a coisa prometia.
Altamont: Agora que já passou um tempo desde o lançamento do Palácio, em jeito de retrospectiva, o que achas dele?
Filho da Mãe: Eu pessoalmente acho que a minha interpretação do Palácio não mudou muito, agora apercebo-me é de mais coisas que, se calhar, não me apercebia na altura. Agora que tenho outro álbum feito consigo ver melhor as diferenças: acho que entrava mais com tudo; nunca tinha gravado um álbum a solo e então tinha tendência a estar mais “por todo o lado”, com mais sangue na guelra. Mas acho que a surpresa esteve na forma como ele foi aceite e compreendido pelas pessoas… e acho que foi, completamente.
Mas já agora… porquê Palácio?
O disco já tinha um nome, mas de repente decidimos gravar na casa de um amigo meu, o Makoto. É uma casa antiga de Lisboa, grande, com umas escadas de pedra porreiras, e nós montámos lá um mini estúdio durante uma semana. À volta dessa decisão juntaram-se várias pessoas, amigos, que de certa forma, juntamente com a própria casa em si, deram um toque diferente ao que eu tocava. A casa costumava ser um palácio antigamente, e tanta foi toda essa influência exterior que ficou assim, Palácio.
Foste e ainda vais sendo, membro original dos If Lucy Fell. Para uma banda punk em Portugal vocês ganharam uma considerável importância mas com o tempo entraram num período de “lume brando” que só este mês foi quebrado no Musicbox. Como explicas esse tempo de acalmia?
São alturas da vida: uma banda tem muito a ver com rotina e If Lucy Fell tinha muita rotina, depois por motivos pessoais e até mesmo só porque “é assim que acontece”, o nosso ritmo diminuiu e ficamos algum tempo sem tocar. Continuamos muito próximos, mas como banda perdemos a rotina, e na minha opinião, quando ela se perde é difícil de recuperar. Entretanto as pessoas vão tendo outros projectos, a vida fica mais complicada…são coisas que acontecem… Fizemos uma reunion”zinha”, mas temos um trabalho projetado para Londres, e queremos voltar a fazer uns concertos para ganharmos essa dinâmica.
Então pode estar na calha um novo álbum de If Lucy Fell?
Pode, pode mesmo, mas eu já nem digo nada em relação a If Lucy Fell (risos)
Mas e passar de um ritmo tão pesado como o dos Lucy, para uma coisa tão diferente como Filho da Mãe… foi uma transição complicada?
Eu sempre toquei sozinho em casa e tudo isso, mas nunca tinha atuado em palco assim, isso para mim foi o que mais estranhei. Essa mudança torna tudo muito diferente, quer a nível da performance, quer a nível da composição… e posso dizer que foi a coisa mais difícil de interiorizar. Por outro lado, se olhares para a discografia que, por mini que seja, tenho com essas bandas, ou até mesmo quando comecei a tocar, os instrumentos acústicos estiveram sempre muito presentes. O primeiro passo grande que dei foi saltar da guitarra portuguesa para If Lucy Fell, e isso nota-se nos arpejos ou até numa maneira mais estranha de tocar guitarra elétrica. Por isso o primeiro grande salto deu-se há muito tempo atrás, depois dei o salto inverso alguns anos depois, por isso acaba por ser uma transição sempre muito natural.
Pegando agora no ato de tocar em si, afirmaste que muitas vezes dás por ti a tocar ao vivo e a pensar em tarefas domésticas que ficaram por fazer ou outras coisas banais desse género enquanto os teus dedos vão quase tocando sozinhos. Ainda te continua acontecer isso?
Isso continua a acontecer e acontece a muita gente. Não é que não preste atenção ao concerto, mas eu sou uma pessoa profundamente distraída. Em concerto, o meu esforço inicial vai para me tentar concentrar, para estar focado naquilo que estou a fazer. O nirvana será tu fechares os olhos, acabou o concerto e tiveste em um com a guitarra, uma coisa quase tibetana. É isso que a pessoa procura, esse momento de união, mas eu como sou um gajo com a tendência para me distrair vou me perdendo ai pelo meio. Dá-se frequentemente estar em concerto a ouvir a conversa daquele gajo ali, às vezes quase que digo “não, não faças isso, vai antes por aquele caminho”… por isso, muitas vezes, as coisas vão passando e quando dou por mim penso “já estou nesta parte da música?!”
Melhores guitarristas de sempre: o que tens a dizer?
Epa sei lá… isto é uma coisa quase cliché mas eu não consigo pensar e mais nenhum outro nome para além de Carlos Paredes. Eu não tenho nada a ver com aquela coisa quase mitológica da guitarra portuguesa, é uma porra com cordas e pronto, o que interessa são os quilos de alma que aquele homem lhe conseguia deitar em cima (…) como é uma coisa muito próxima de mim, aquela dimensão muito portuguesa (com a qual também nasci) é esse o único nome que me vêm à cabeça, apesar de que eu em puto, por exemplo, ouvia muito Paco de Lucia também… No geral não sou um gajo com muitas referências na guitarra clássica.
Passando agora para o Cabeça, o teu novo trabalho, pode-se dizer que fazer um álbum novo te faz a cabeça em água?
Eu pensava que não, tenho sempre muitos riffs, muito material em casa, e achei que ia conseguir estar sempre a editar discos ou minidiscos, mas por alguma razão fui-me apercebendo que não é assim tão fácil. Portanto sim, pôr discos cá para fora deixa-me a cabeça em água, mas felizmente as coisas vão sempre correndo bem. Estive muito tempo a fazer músicas sem saber que estava a fazer músicas, por isso quando fui gravar a Montemor, num espaço do Rui Horta, saiu-me um álbum… Tinha um riff”zinho” aqui, umas coisas acolá e no final acabou por sair tudo e a fazer sentido, por isso a partir de agora vou passar a preocupar-me menos.
Voltando a nomes… Porquê Cabeça?
Ainda em fevereiro ou assim, fomos ao Gerês com o Makoto, para uma casa antiga, e levamos o mini estúdio de novo. Pensei “Vou por-me a gravar…se calhar ainda sai um CD ou EP…” e saímos de lá com quatro “musiquinhas”: umas que não aproveitei, outras que aproveitei trechos e mais outras duas que estão no disco. Mas nesse sítio, a Cláudia começou a fazer umas ilustrações de uma cabeça que havia por lá numa cadeira antiga. Nós começamos a falar de cabeça, que era uma complicação na cabeça, e que já estava na cabeça… Basicamente foi desse sitio que nasceu o corpo do álbum, a alma, e a partir daí ficou Cabeça. O álbum tem tudo a ver com o que se faz ao contrário sabes? Muitos errados às vezes fazem uma coisa certa e houve muitos errados neste percurso que deram certo e até o meu percurso tem muito a ver com isto.
Nós tivemos oportunidade de ouvir-te no Musicbox, lançaste umas coisas novas, e notámos que estás a bater mais na guitarra, tens uns sons mais distorcidos… Podemos estar perante uma aproximação do punk-rock ao mundo da guitarra clássica?
Eu acho que sim, sempre teve isso, mas uma coisa é ouvir ao vivo e outra no disco. Não sei como se vai comportar ao vivo, nunca o toquei completamente, mas acho que agora assume-se mais essa diferença: ao vivo temos uma coisa mais performativa e no disco mais contemplativa. No Palácio preocupava-me mais que as coisas fossem ao vivo aquilo que são no CD e hoje acho que têm de ser diferentes: tu quando estás sozinho na tua sala a ouvir música não é a mesma coisa de estares numa sala de concertos.
Já estamos a chegar ao fim desta entrevista, mas antes de lá chegarmos, tenho de te fazer mais umas perguntas, encomendadas pela restante equipa, que não pode estar aqui.
Vamos a isso
Então, quando vais a um concerto, onde tu próprio não atuas, soltas uns quantos solos de air guitar?
Espero sinceramente que não, é só o que te posso dizer.
A próxima: O que é que a tua mãe achou do teu nome de artista?
A minha mãe adorou o nome (risos), se formos a ver bem até acaba por ser uma certa homenagem… Ela também acha que me devia chamar filho da p***, mas se filho da mãe já é um nome complicado em termos comerciais, esse então seria o fim.
Finalmente… Qual o teu top 3 de álbuns que saíram este ano?
Eu, infelizmente, não consegui ouvir muitos álbuns até porque estava a fazer o meu próprio. Tenho ouvido essencialmente coisas antigas e muito jazz para relaxar a cabeça. É um bocado suspeito também referir as pessoas que te estão próximas mas dos álbuns que ouvi mais foi o Turbo Lento dos Linda Martini, o de Riding Pânico também e houve um disco de fado que gostei imenso, desta nova vaga de fadistas, a Gisela João, adorei esse disco, está com coisas grandes dentro. Depois a nível internacional ouço muito Foals, as coisas antigas de These Arms are Snake, Converge também, e White Denim. Eu, de um modo geral, estou com um bocado de crise de referências em termos do que é que surge de novo que é de facto bom: oiço qualquer coisa, gosto, mas nada me agarra muito, por assim dizer. Na volta estou é a ficar velho…
Para a parte mais formal… novidades para os próximos tempos?
O disco é uma edição de autor com o apoio da Cultura Fnac, vai ser distribuído digitalmente pela Universal e vai ter um vinil pela Lovers&Lollypops (sairá em Janeiro). Vai haver uma apresentação ao vivo dia 15 de Novembro no Teatro do Bairro com disco bilhete: quem compra o disco têm a entrada para o concerto. Depois uma mini-tour por Portugal, França, Holanda e Espanha.
E assim se passaram uns bons 45 minutos, de imperial em riste e conversa afiada com o “gajo careca e de barba”.
Meu grande Filho da Mãe… muito obrigado.
(Fotos: Francisco Fidalgo)