O samba saiu à rua e sangrava! Vinha, através da voz de Elza Soares, do fim do mundo, testemunhando a dor e a perdição humanas.
Avancei para estas linhas correndo o risco de me repetir. Não é difícil explicar o receio: na edição passada do Vodafone MexeFest, no mesmo local de ontem, fui eu que vi e escrevi sobre o concerto A Mulher do Fim do Mundo, e por isso agora, em presença do mesmo show, o grande perigo a evitar seria o da redundância, digamos assim. A tarefa, convenhamos, era tão ingrata quanto problemática, uma vez que me parecia bastante difícil fugir à realidade (agora repetida) que o concerto encerra. E também porque não se poderá nunca inventar um outro angulo de apreciação crítica quando temos pela frente alguém que nos arrasta para um beco escuro e sem saída, nos desarma, nos maltrata dando-nos consecutivos socos no estômago e poderosos uppercuts que nos colocam em autêntico k.o. técnico. No fim, como é óbvio, fomos nós a agradecer a generosa dose de pancada (em quantidade e qualidade, pois claro) que levámos, bem como as nódoas negras que Elza Soares nos deixou na alma. Sabíamos, à partida, que seria assim. E foi um autêntico arraso, portanto. Dos bons.
Elza Soares começou a noite a perder. A Champions, o Real Madrid e um conhecido madeirense que por lá joga roubaram muita gente ao Coliseu. Que pena! Meia casa é muito pouco para a grandeza que a noite assegurava. Não era a primeira vez que o futebol se cruzava na vida da carioca da favela de Moça Bonita. E, uma vez mais, não saiu totalmente vitoriosa, uma vez que merecia ter encontrado um Coliseu que fizesse lembrar as maiores enchentes do Maracanã. Mas os derrotados, verdadeiramente, foram os ausentes que preferiram a relva, a bola e a cerveja como companhia na vitória de nuestros hermanos. E, por outro lado, ganhámos nós, os que ouvimos e vimos a rainha negra da vida sofrida, do samba escuro e favelado, do samba dos malandros, dos morros, do samba sem os artifícios dourados da Marquês de Sapucaí. Por isso, ontem o samba saiu à rua e sangrava…
Ouvir, logo no início do show, Elza pedindo que a “deixem cantar até o fim” (no tema “Mulher do Fim do Mundo), é sempre algo que me comove. Assim como quando solta a voz dizendo que “a carne mais barata do mercado é a carne negra” (“A Carne”, do álbum Do Cóccix Até o Pescoço). Sobretudo porque ambas as canções estão na base da ideia principal do show, que é a da denúncia de situações indignas, estropiantes, que afetam principalmente as mulheres, os da raça negra, os desvalidos entregues à rua e ao que o destino lhes conseguir, a custo, oferecer. Por isso, o show A Mulher do Fim do Mundo não tem quase nunca um tom festivo ou celebratório. Não pode ter. Soaria a falso e isso liquidaria a essência do conceito apresentado. A dureza das palavras cantadas em tudo concorda com a densidade instrumental que se ouve durante todo o tempo do espetáculo. E tudo é excecional, desde a escolha dos temas, à interpretação (já há muito mítica) de Elza Soares, passando pelos músicos em palco. Guilherme Kastrup, naturalmente, é quem mais se destaca. É ele o cérebro por detrás de todo o show, e nota-se bem a alegria com que se entrega à função de coordenador, de verdadeiro maestro.
Elza foi pedindo, no alto da sua poltrona de Rainha, que se dessem muitos gritos nos momentos entre as canções. Já em novembro assim foi. Alegra-se com o entusiasmo do público. Precisa dele. Precisa da certeza de estar a agradar. E ontem, uma vez mais, agradou. Por isso ficou uma certeza: até breve, Elza. Vêmo-nos para a semana, mais lá para o norte do país.
Fotografia: Luís Flôres