Lusofonia

Luciano Mello: um músico brasileiro exilado em Braga

É cantor, compositor, produtor, com uma vasta obra em nome próprio e também com bandas sonoras para teatro, dança e cinema. Também escreve para outras pessoas, nomeadamente Elza Soares, que declara Luciano Mello como um dos seus compositores predilectos. Acaba de lançar o novo disco, Vida Portátil, feito em Portugal durante o confinamento.

És um brasileiro a viver em Braga. Há quanto tempo e porquê?

Desde Novembro de 2018. Eu já havia decidido morar em Portugal mas era um plano para ir em 2019 ou 2020, porém a situação do Brasil, das eleições, apressaram a minha saída porque eu sabia que o país ia ficar insuportável com esse maluco que habita a presidência do país.

De facto tem havido muitos músicos brasileiros a vir para Portugal, mas desde essas eleições o “êxodo” acelerou um bocado.

Exacto. Um auto-exílio antes que nos exilassem, porque o Brasil está altamente intolerante a ideias que não pertençam a uma determinada casta, a uma determinada classe social, que não enalteça os mais poderosos. Os demais, os que pensam diferente, os que não estão dentro não são bem-vindos e começou a tornar-se um país bastante perigoso para se viver. Não há mais democracia.

E depois de decidires esse exílio, como é que acabaste a ir viver para Braga?

Eu estava muito cansado de tudo, inclusive um pouco cansado da vida de artista, de ter que trabalhar exaustivamente, o Brasil já vinha com dificuldades para aceitar projectos que não se enquadrassem em determinados padrões, subitamente o sertanejo universitário tomou conta de todos os espaços, o Brasil era um país cheio de diversidades, e eu já estava um pouco cansado. E um casal de amigos morava em Braga e quando eu tive que ver toda a situação do visto e tudo o mais, fiquei um mês em Braga. E era tudo tão calmo, tão tranquilo, tanta paz, com um Theatro Circo que é um teatro tão lindo, com tantos lugares para ir, com tantas possibilidades de caminhar à noite, que é uma coisa que me faz muito bem, poder andar com o telemóvel à mão à hora que eu quisesse… essas coisas fizeram com que Braga me seduzisse, o meu plano era Lisboa e acabei ficando em Braga. Penso muitas vezes em ir para Lisboa mas sigo bastante apaixonado por Braga, confesso.

Foi aí que estavas quando se deu a pandemia e ficámos todos confinados em casa. E aproveitaste esse período para fazer este álbum, Vida Portátil, que é filho do confinamento?

É um disco do confinamento. Estávamos confinados, eu com o estúdio que tenho em casa com todo o equipamento disponível e um artista plástico, que é o Patrick Tedesco, que é um brasileiro, que viemos, em princípio para dividirmos apartamento e depois ir um para cada lado mas a pandemia não permitiu. Ele produz uma obras incríveis que são peças de gelo, e ele filma e fotografa o derretimento dessas peças, e ele derrete essas peças em cima de telas, então além do filme e das fotos ele também passa a ter uma pintura, usa tintas e tudo o mais. Ele na sala do apartamento, que é uma sala muito grande, produzindo sem parar, e eu trancado no estúdio produzindo sem parar. Eu olhava as peças que ele estava produzindo e eram tão lindas que eu criava músicas. E um dia eu disse “olha, vi dois trabalhos teus e criei estas músicas”, e ele diz “o que mais estás criando?”… e ele também começou a criar obras para o trabalho, e não percebíamos que tínhamos montado um trabalho. E estávamos a falar muito sobre a mesma coisa, de que a vida tinha-se reduzido a um telemóvel, a essas reuniões por zoom, por estes caminhos, e que ao mesmo tempo que isso era algo incrível e impressionante porque nos aproximava dos amigos, dos parentes no Brasil, nos mantinha próximos de todos, nós lembrávamos que também era isso que tinha destruído o Brasil, foram as fake news, foram todas as invencionices que criaram, que levaram o Brasil a uma situação muito trágica. E nós começámos a enlouquecer, de o quanto essa vida era boa e o quanto era ruim. Então me surgiu a ideia de que vivíamos uma vida portátil, uma vida que estava reduzida aos nossos pequenos equipamentos e que ali nós tínhamos as verdades, as mentiras, a comunicação, tudo estava ali dentro, e começámos a trabalhar pensando nisso, criando músicas e trabalhos a partir disso.

Li também que a ideia veio de uma notícia que leste no jornal, de um rapaz que conheceu uma pessoa na internet e veio para Portugal à procura dela e quando chegou cá, não havia nada. Isso é algo que nos faz pensar, sempre, a ainda mais nesta altura em que estamos ainda mais dependentes da internet e destes contactos digitais em que não fazemos ideia do que é que está do outro lado. Isso inspirou só o single, “Vazio”, ou todo o disco?

O conceito de todo o álbum é o mesmo, mas essa ideia do vazio aconteceu um pouco antes da pandemia. Eu já sabia dessa notícia, porém, durante a pandemia essa ideia veio com mais força e mais clareza, porque ela estava dentro desse facto, dessa cena das comunicações digitais. Essas duas pessoas conheceram-se por internet, conversavam por internet, trocavam ideias pelo Facebook e Whatsapp, e quando o rapaz veio do Rio de Janeiro para o Porto, chegou e não havia ninguém. E quando foi procurar às redes sociais, não existiam ais, não havia nada, não havia rasto. Na pequena notícia, que saiu num jornal do Rio, eu fiquei muito comovido e muito impressionado com essa possibilidade e percebendo que é uma possibilidade real dentro do irreal.

Achas que isto veio acentuar as nossas fragilidades?

Creio que sim, estamos muito frágeis, inclusive o álbum Vida Portátil, encerra com um texto que diz qualquer coisa como «estamos repletos de sinais, espectros não captáveis por nossos sensores físicos (…) estamos dominados pelo que não podemos sentir, pelo que não sabemos controlar». São tantas informações, tantos sinais, tantas notícias, que já não temos controlo, e à medida que ficamos confinados ficamos ainda mais frágeis, com certeza. Penso que isso vai-nos fortalecer para o futuro, mas agora penso que estamos mais frágeis.

Nesta altura, quando se fala do novo normal, velho normal, achas que no futuro vamos conseguir retirar desta fase digital só o melhor e voltar a ser seres físicos?

Não estou optimista, acho que nos vamos isolar atrás dos ecrãs cada vez mais, acho que é uma tendência, por exemplo os trabalhos já estão todos sendo feitos a partir de casa. Por exemplo, eu produzi para o Brasil um álbum que eu fiz inteiro dentro de casa para um artista brasileiro, que é o Guto Leite, eu produzi tudo e no Brasil ele colocou as vozes, mandou de volta e eu misturei. E o álbum saiu assim, não nos falámos. O meu álbum também é todo digital, foi todo feito aqui neste espaço, tanto que chamei de Orchestra Falsa à banda que me acompanha, que é uma mentira, não há orquestra. Ou é verdade, porque é Falsa…

Este disco soa mais electrónico – o anterior tinha mais piano acústico – mas agora é quase industrial, uma coisa fria. Essa camada instrumental foi pensada de propósito, para sublinhar esta coisa da vida com os computadores e sem o contacto humano?

Exacto. Foi pensada e captaste algo muito importante, que é o industrial. Eu comecei no industrial, o meu primeiro projecto chamava-se zurbE [não está nas plataformas digitais, por agora, mas estará ainda este ano], um projecto de 1996, eu e um amigo, ele fazia algumas programações electrónicas e tocava guitarra muito bem, eu cantava usando as vozes todas com efeitos e distorções, e fazia todo o resto das programações. Então, em certo momento, um produtor brasileiro muito importante desafiou-nos, que nós não conseguiríamos fazer um disco de industrial music no Brasil, porque necessitava de um equipamento muito grande, muito caro. E eu disse: “nós estamos fazendo em casa”, e ele disse “não é possível”; pois eu vou fazer e vou mostrar, e fizemos um álbum que acabou por receber bastante atenção da imprensa na época, porque nós conseguimos fazer a partir de 8 canais de gravação que era o que tínhamos à nossa disposição em casa, um álbum muito grande e que foi importante para a época. Mas eu saí daí, saí de dentro da industrial music, do movimento pós-punk. Sempre gostei muito, lá atrás, dos Talking Heads, mas depois me apaixonei por Ministry, Nine Inch Nails e essas coisas electrónicas muito pesadas e delicadas ao mesmo tempo.

Isso é pouco habitual, na música brasileira que nos chega cá. E acho que podemos falar num Novo Brasil. Durante muitos anos só chegavam a Portugal os grandes nomes, Caetano, Chico, Gilberto, etc. Mas a partir de certa altura começaram a aparecer por cá o Silva, o Cícero, Luca Argel, o Marcelo Camelo vive cá… podemos falar numa nova corrente da música brasileira?

Eu não sei se ainda há essa corrente no Brasil, no sentido em que não existem editoras interessadas, não existem mais projectos que permitam. Por exemplo, até o golpe que depôs a presidenta Dilma, tínhamos projectos muito claros e muito específicos, eu como artista independente dei-me ao direito, durante 20 ou 25 anos, de viver da música independente, sem depender de uma editora, sem depender de ter um patrão, eu podia gerir a minha música e fazê-la como bem quisesse. Tanto que fiz um álbum em 2007, depois fiz um Ep em 2012, em 2015 outro álbum, e esses álbuns partiram de financiamentos que eram facilitados, se uma empresa me facilitasse ganhava essa isenção no imposto, ou eu podia participar de um orçamento participativo… o povo jogava, havia uma votação para saber seu poderia fazer ou não, então existia mas não nos grandes media, a música diferenciada do Brasil sempre existiu, mas não nos grandes media. E existe ainda hoje, temos artistas, imensos, alternativos e maravilhosos. Eu acho que a música que eu faço é um tanto quanto isolada porque eu acho que sou maluco mesmo, mas tem muita gente a fazer coisas diferentes. Os Los Hermanos quando apareceram era estranhíssimo, as pessoas achavam estranhíssimo, principalmente a partir do segundo disco deles, Bloco do Eu Sozinho, é genial, é maravilhoso mas as pessoas achavam aquilo estranhíssimo. Um ano depois, já não achavam estranho. Quando eu lancei o meu primeiro álbum as pessoas diziam “essas passagens de acordes, daqui pra lá, não se faz, é estranho”. Passou o tempo e mais ninguém achava estranho porque se começou a usar e acabou por ser uma tendência porque outras pessoas também descobriram aquele tipo de coisa, não por causa minha, mas porque já era necessário descobrir.

E tens acompanhado a música que se vai fazendo por cá, alguma coisa portuguesa que te tenha chamado a atenção?

Sou apaixonado pela Maria João! De uma maneira que é possível que eu me ajoelhe quando a vir pessoalmente. Ela também é uma representante da música brasileira, ela ousa em cima da música brasileira, faz coisas incríveis. Há coisas do Brasil que eu nunca suportei ouvir, como uma coisa que toda a gente ama, “Canto de Ossanha”, eu achava aquilo chatíssimo até ao dia que ouvi com a Maria João.
O Laginha acho maravilhoso. Luís Caracol tem uma linguagem cancionista, muito clara muito definida, incrível. E o Abrunhosa, também estendo um tapete para ele. Sou muito fã do Abrunhosa. Eu gosto muito dos artistas que se preocupam com a sonoridade do que estão a fazer. A Maria João tem isso, o Abrunhosa tem isso, o som dos álbuns dele é sempre supreendente, impressionante. E ele é muito político, tem uma posição política muito próxima da minha, defende causas de minorias… a música tem de ser isso também!

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