A minha relação com Strange Days (1967) dos Doors é muito especial e envolve muito carinho para com o objecto que ainda hoje só tenho apenas em vinil.
Tenho a perfeita consciência que este género de relação desenvolve-se num certo período da nossa vida, o da descoberta musical e quando começamos a adquirir, com o dinheiro da mesada, os primeiros álbuns.
Existem por isso alguns discos que guardo com carinho e que mesmo que já não me identifique muito com a música, têm sempre um lugar especial no armário discoteca lá de casa.
Mas com os Doors a relação é bem mais séria, não apenas com a banda, mas com este álbum em particular, talvez porque não fui eu a comprá-lo… Na verdade, foi uma prenda de anos.
Em plena adolescência (peço perdão mas não me lembro da idade em concreto… talvez 15 ou 16 anos…), os Doors eram vitais para sobreviver as calamidades provocadas pelas hormonas e por toda uma série de descobertas, lícitas ou ilícitas, sexuais e sociais.
Na altura identificava-me em pleno com a poesia de Jim Morrison, também ele muito jovem quando escreveu as primeiras canções para o grupo. As imagens surrealistas, encobertas por nonsense e filosofia hippie mas ao mesmo tempo niilistas, encaixavam perfeitamente no meu mundo, que ainda vivia as ondas de choque provocadas pelo grunge ou por discussões políticas no intervalo das aulas, onde todos os dias encontrávamos a solução para os problemas do planeta.
Foi com os álbuns dos Doors que comecei a descobrir a sério a música feita antes dos anos 90, antes de todo o grunge com o qual me identificara.
Comecei a perceber a influência das drogas na música, o movimento psicadélico e toda a contra-cultura hippie que com os seu sonho e utopia, abanaram uma sociedade em constante tumulto.
Os Doors eram para a minha adolescência o que tinham sido para América que combatia no Vietname.
Claro que construir todo um imaginário sobre aquele período na História, o de finais dos anos 60, contribuiu muito o filme de Oliver Stone “The Doors – O Mito de Uma Geração”. Depois de o rever há uns anos, mantenho a opinião de que a primeira parte é absolutamente irrepreensível, com Oliver Stone a relatar a formação do grupo e êxito inicial através de imagens belíssimas que exaltam o psicadelismo californiano, a liberdade sexual e a descoberta de dimensões paralelas através do consumo de LSD.
Daí para a frente o filme mantém a narrativa “by the numbers”, com alguns apontamentos de realce, é certo, mas perde por tentar mostrar a cada sequência, o quão “fora-da-lei” era Jim Morrison.
Hoje sei que não é bem assim. Sei que Morrison podia ser electrizante ao vivo, mas não era sempre doido varrido, não estava sempre bêbado ou pedrado.
As imagens do filme de Oliver Stone prolongavam-se para a vida real sempre que ouvia os discos dos Doors, sempre que ouvia a poesia de Morrison no American Prayer ou quando a lia, num estreito livro de poemas pensado de propósito para um qualquer adolescente enraivecido com a sociedade.
Strange Days chegou-me às mãos quando fiz anos (mais uma vez, não me lembro em que ano…). Um casal amigo da mesma turma, namorados na época, lá percebeu o meu fascínio pelos Doors e por Jim Morrison e foram à procura de algo que ainda não tivesse. E eis que oferecem Strange Days, o meu primeiro vinil dos Doors.
Da felicidade em pleno liceu, para os momentos a sós com o disco foi um instante, pois fiz questão de o ouvir o mais rapidamente possível.
E o que se seguiu foi uma verdadeira viagem por aquele que considero o melhor conjunto de canções do grupo. Desde o tema que dá título ao disco, com a voz de Morrison envolta num efeito psicadélico, passando pela poesia gritante de “Horse Latitudes”, por “Moonlight Drive” que tem a importância de ser a música que Morrison cantou para Ray Manzarek quando os dois se reencontraram na praia para depois formarem os Doors; e terminando no épico “When The Music’s Over”, que tem uma das mais brilhantes explosões rock n’ roll de sempre.
Pelo meio há canções essenciais do grupo como “You’re Lost Little Girl”, “Unhappy Girl” ou “Love Me Two Times”.
Para além da música, a capa magnífica, que por ser no seu formato original em vinil, me atraía imenso, com a fotografia do grupo de saltimbancos a fazer números de circo, com um tímido cartaz dos Doors em segundo plano.
Aliás, Strange Days acaba por ser o único álbum sem uma fotografia do grupo pensada como tal para capa de disco. Aparece uma imagem, mas é o tal poster, a preto e branco, em fundo e que não é mais que a contra capa do primeiro álbum.
Em Strange Days continuam as mesmas ideias do disco anterior, até porque as canções foram compostas mais ao menos na mesma altura. Mas a produção e os sons que vão surgindo aqui e ali para demonstrarem essas visões são mais pensados, melhor arquitectados e revelam um maior amadurecimento de uma banda que estava a moldar o som do rock americano.
Aqui não há um “Light My Fire” ou um “Break on Through” e talvez por isso mesmo, por ter canções menos “batidas”, passei a gostar muito mais de “Strange Days” do que do primeiro.
A partir daqui os Doors perdem algum do seu fôlego, só recuperado totalmente em Morrison Hotel de 1970.
A minha cópia de Strange Days, a única e que se mantém a mesma que foi oferecida já há tantos anos, ora está religiosamente guardada, ora viaja de vez em quando para um qualquer dj set mais psicadélico.
É um dos discos que levarei comigo para o outro mundo. Irá comigo para pedir um autógrafo ao Rei Lagarto.