Pode o disco rock do ano ter sido feito por um Dj? Pode bem ter acontecido. Vamos por partes.
DJ Harvey, o nome pelo qual é mais conhecido o britânico Harvey W Bassett, é um nome estabelecido entre os gurus do gira-disquismo. Desde o final dos anos 80, Bassett tem sido um pioneiro em vários aspectos da arte de misturar sons. Começou pelo rock, aliás as suas raízes são de baterista numa banda punk, mas rapidamente passou a trabalhar com os pratos, a passar e a transformar a música de outros. Numa célebre viagem a Nova Iorque, no início dos anos 90, apanhou a febre do hip-hop, e nunca mais parou. Daí até à house e aos sons mais vanguardistas da música electrónica foi um lento mas seguro caminho, com Harvey a tornar-se progressivamente conhecido como um dj selvagem (as festas, os copos,os excessos), que misturava de forma inesperada os sons mais inorgânicos com temas garage e rock. Foi dj residente do infame Ministry of Sound, fundou e dirigiu maratonas míticas de festas que duravam dias e dias e dias, e com isso ganhando fama no ainda assim alternativo mundo dos dj. Então como é possível que, no ano da graça de 2014, tenha largado os pratos e a música de outros, para fazer um disco absolutamente tradicional de rock com laivos de um psicadelismo de macho alfa?
Terá sido, diga-se, o efeito de se ter mudado de vez para Los Angeles, ganhando o tempo e a tranquilidade para três coisas: voltar a tocar instrumentos a sério, compor música original e dar longos passeios na sua potente mota, debaixo do sol californiano. Destes três elementos nasceu este Wildest Dreams, uma magnífica surpresa desta recta final de 2014, pela mão de um tipo que parece um actor porno reformado.
São 10 temas que se complementam e se ouvem quase como uma única música. Harvey conseguiu, de facto, forjar uma identidade sonora muito própria, apanhando sonoridades de vários clássicos que, com toda a certeza, carregou na sua mala de discos ao longo dos anos. A base é um rock psicadélico a lembrar os momentos mais acelerados de Jonathan Wilson; junte-se a isto uns floreados muito bem doseados de The Doors fase LA Woman (ouça-se, por exemplo, “Pleasure Swell”, que fecha o lado A do vinil); uns pozinhos de surf music; uma pujança rock de uns Deep Purple da altura de Fireball; e uma liberdade de interpretação que dá a todo o disco um ar relaxado, embora nunca desleixado.
Aliás, a forma de composição terá sido, em grande medida, ditada pelas jams com os restantes músicos (no disco, Harvey é responsável pela voz, pela guitarra e pela bateria). Os temas vão-se espraiando ao sabor dos riffs, com o baixo de Ethan Phillips a dar um excelente groove ao ambiente e as teclas de Dan Hastie brincando ao Manzarek e puxando-nos para o sol de Venice Beach dos anos 60.
A diferença para o rock psicadélico dos dias de hoje, que gera discos como uma enxurrada traz lama, é que Wildest Dreams transpira testosterona por todos os poros. Enquanto outros discos do psych da colheita actual cheirarão a flores, este cheira a gasolina e a pó da estrada.
Sim, um dos grandes discos rock do ano foi feito por um dj. Que aqui, à guitarra e a à bateria, soa mais autêntico que qualquer rocker endurecido pelos anos.
Enjoy the ride.