Onze anos depois, os dEUS regressam aos discos com a sua personalidade intacta e sempre interessante.
Onze anos é muito tempo. Onze anos no rock ‘n roll é uma eternidade (os Beatles duraram menos que isso). Onze anos com uma pandemia pelo meio, que alterou a nossa simples capacidade de processar o tempo que passa, estendem-se ainda mais.
Mas foi em 2012 que os belgas dEUS nos tinham oferecido o último disco, Following Sea. Com a vida a acontecer durante todo este tempo, a primeira pergunta é mesmo que dEUS podemos ter em 2023. Com a edição de How To Replace It, que teve já este ano apresentação no Coliseu dos Recreios, a resposta está dada: os mesmos, com mais anos e mais vida em cima.
Foram-se os tempos efervescentes de clássicos absolutos do rock alternativo como Worst Case Scenario (1994), In a Bar Under The Sea (1996) ou The Ideal Crash (1999), quando os dEUS mais se aproximaram de um sucesso de massas sem deixar nunca de ser o segredo bem guardado pelos conhecedores. Seguiram-se quatro álbuns bem feitos e com vários bons momentos, mas o zeitgeist havia mudado para sempre.
Sejamos claros desde já, não é com este disco que as coisas vão mudar. Este é um álbum eventualmente menos imediato que outras coisas que os dEUS já fizeram e serve, sobretudo, para os fãs sentirem que estes companheiros de tantas viagens continuam cá, connosco. Na verdade, como os próprios admitem, os dEUS nunca perseguiram uma fama imensa, nunca deram um passo no qual não acreditassem. Esse lado artístico, essa teimosia, digamos, de velha Europa, faz parte do seu charme.
O que How To Replace It nos relembra é o quão idiossincráticos estes tipos são, a forma como têm realmente uma própria linguagem que mais ninguém faz. Isso vê-se nas escolhas, nos arranjos, nos pormenores escondidos, na forma como até as melodias mais bonitas correm o risco de ser subitamente subvertidas e até sabotadas.
Como noutros discos da banda de Tom Barman (um dos únicos dois sobreviventes desde o início da banda e que vive parte do ano em Lisboa), este é um álbum para ser consumido por inteiro, saboreando os ritmos da sequência escolhida nada ao acaso. No entanto, não podemos destacar o início muito forte de um disco que, depois, vai perdendo algum gás e brilho. Desde o arranque com a lenta, ameaçadora e “nickcaveana” “How to replace it”, à familiariedade melódica de “Must have been”, passando pela grande canção “Man of the house”, que vai mudando, crescendo, hipnotizando-nos, naquele que é talvez o momento alto deste álbum. A honra deve ser dividida com “1989”, uma balada quase a la Leonard Cohen, que leva Barman de volta ao ano em que, era ele adolescente, e o seu pai morreu.
Com isto, temos as óptimas quatro primeiras músicas do disco. Se o álbum parece algo longo e não mantém essa qualidade inicial, isso não significa que o resto seja desprovido de méritos. Todos os temas são inventivos, elegantes e entregues com aquela personalidade teimosa artsy e “ligeiramente ao lado” que faz parte do ADN da banda. De mencionar, por exemplo, o funk de “Why think it over (Cadillac)” ou a lenta e bonita “Love breaks down”, talvez mais bonitinha do que poderia ser e esperaríamos dos dEUS.
How To Replace It regressa à tradição de ter uma música em francês, com a plácida e ao mesmo tempo tensa “Le blues polaire”, com ecos da spoken word do mestre Gainsbourg.
Que dEUS temos em 2023? Uma banda menos enérgica, menos tresloucada, mas que continua a destacar-se pela sua voz original. Uma banda madura, que cresceu, viveu e ganhou cicatrizes. Como todos nós.