David Bruno tece uma ode musical ao Portugal suburbano do início dos anos 90, num disco intrigante que mistura vulgaridade romântica com uma elegância inesperada.
David Bruno, homem de Gaia, é uma das traves-mestra do Conjunto Corona. Desta feita aventura-se a solo, com base na mestria dos samples e da base musical que sempre assegurou no seu grupo de hip-hop esquizóide.
O conceito deste disco é uma espécie de ode aos anos 90. Não à parolice saudosista e falsa dos Revenge of the 90’s, mas sim uma saudade do nacional-parolismo genuíno que Portugal vivia então, num momento da nossa história em que os dinheiros da CEE e de um mundo novo de possibilidades coabitava com o país profundo, ainda rural e suburbano, feito de patos-bravos e de velhinhas à janela.
É um hino a um tempo perdido, em que subúrbios como Mafamude ou até a cidade de Gaia mantinham um carácter distinto, vida de bairro, rituais domingueiros, centros comerciais de 15 lojas e festas populares. O risco que David Bruno corria aqui, e que se insinua na capa do disco (inspirado numa capa de Marante, o líder dos Diapasão) e se confirma muitas vezes nos Corona, é resvalar para um pastiche irónico. Na verdade, o que torna este “O último tango em Mafamude” é que, na música, essa ironia não contamina tudo o resto. Há, aliás, o que passa como um amor genuíno a um tempo e vários lugares, mais do que um exercício de gozo desse fenómeno.
A grande força está na música, como sempre acontece. É um disco maioritariamente instrumental, nunca longe de um registo algo cheesy de piano-bar ou de pano de fundo para um cantor romântico. O facto de David Bruno – que pode ser conhecido melhor neste trabalho do Observador – tornar isto tudo não apenas tragável mas até elegante faz toda a diferença no resultado final. De resto, temos samples e beats entrecortados com sons de noticiário ou episódios da “vida real”, num registo próximo do hip-hop mas em que a voz, aqui e ali, surge discreta e apenas para pontuar o ambiente geral.
Talvez o ensejo fosse mesmo o de homenagear os Marantes desta vida, mas o que saiu foi mais sofisticado que tudo isso. Mais do que Emanuel ou Toy, “O último tango em Mafamude”, na sua composição, soa mais a algo que um certo Serge Gainsbourg (que muitas vezes andou entre o clássico e o vulgar melhorado) faria, se tivesse nascido em Gaia e fosse ao café em Mafamude, no seu fato de treino de fim de semana.
Um disco curto e intrigante, que nos conquistou até para nossa surpresa.