A carreira dos escoceses Cocteau Twins ficou sem dúvida marcada pelo vasto número de discos lançados na década de 80. Mas sobretudo, e acima de tudo, pela incontornável voz da soprano Elizabeth Frazer. Com o passar dos anos, o trio tornou-se numa referência primordial da vaga dream-pop/ethereal wave. No entanto, é importante não esquecer que a sua ascendência provém da linhagem punk britânica. É no pós-punk que o agrupamento funda as sua raízes.
Garlands, o primeiro trabalho da banda a ser lançado em 82, foi de imediato apadrinhado pela 4AD, a editora mais marcante da década e a eterna imperatriz da cena post-punk alternativa. A partir desse momento os Cocteau Twins marcam de imediato uma posição de destaque. Curiosamente, o nome da banda ficou-se a dever a uma música do projecto inicial do conterrâneo Jim Kerr, que dava pelo nome de Johnny & The Self-Abusers. Mergulhemos então na densidade magnética de Garlands.
Trata-se de um álbum que gira muito em torno da obscuridade, um lamento às trevas da religião eclesiástica, de tão soturno que é- “The devil bite’s dirty”. Nele encontramos uma Frazer mais visceral e menos romântica que nos trabalhos sequentes. São francamente notórias as influências de Siousxie na forma como as negras frases vão sendo proferidas, sem grandes rodeios estilísticos. A intenção é crua, as palavras servem o seu significado. Basta escutarmos com atenção “But I’m Not” que apresenta uma toada mais punk e agressiva, atiçada pelo poderoso baixo do dissidente Will Heggie.
Um dos factores que tornou este álbum num marco único, foi a excepcional utilização da drum machine TR-808 da Roland (que libertou, e bem, a estrutura sonora dos restantes instrumentos). Entrados em estúdio há pouco mais que umas escassas horas, sem experiência nem conhecimento de técnicas de gravação, o trio limitou-se a fazer um concerto ao vivo e gravá-lo em duas simples pistas. Aconselhados pelos engenheiros de som a mudar de percussão, o resultado da bateria do TR-808 revelou-se menos pungente e mais minimal que as caixas de ritmo com que a banda estava habituada a tocar naquela altura. Hoje, passados mais de 30 anos, é o próprio Guthrie que reconhece a limpidez da bateria que fez de Garlands um álbum à época notável. Nada fazia prever que o TR-808 se iria tornar num ícone do hip-hop…
Enfim, no meio de tanta história e arqueologia instrumental, arrisco-me a dizer que o primeiro disco dos XX veio beber muita da sua inspiração a este disco. Nem sempre uma banda se revela totalmente no seu primeiro trabalho. E nem sempre os primeiros discos são os melhores. Mas em Garlands, o que os Cocteau Twins fizeram, não voltaram a repetir. Nunca mais os lamentos de Frazer foram tão pesados e ao mesmo tempo tão esplêndidos. A glossolalia foi tomando posse do espírito quero posso e faço do projecto, e os riffs ásperos de Guthrie foram-se perdendo na melancolia etérea dos tempos modernos. Profana sejas, grinalda.