João Correia sofre de um estranho caso de múltiplas personalidades musicais. Às vezes acorda como discreto e competente baterista, correndo esbaforido de um lado para o outro para chegar a tempo das dezenas de concertos (e sessões de gravação) dos artistas para quem batuca (Márcia, Walter Benjamin, Frankie Chavez, Aduf, Groove 4tet…). Outras vezes acorda com um ódio visceral a baterias: é então vocalista e guitarrista dos Julie & the Carjackers, revelando uma criatividade essencialmente colaborativa, escrevendo – em conjunto com Bruno Pernadas – um sofisticado indie rock muito meticuloso nas suas exóticas ambiências e devaneios. Outras vezes cansa-se da pequenez do nosso rectângulo e apetece-lhe andar estrada fora pelo oeste americano com a sua amiga Francisca “Minta” Cortesão, chamando-se então They’re Heading West. Mas nenhuma dessas facetas é chamada para aqui; o que nos interessa agora é quando acorda violentamente ele próprio, com uma criatividade espontânea, crua e individualista, porque intimista e confessional. Quando isso acontece João Correia responde pelo nome de TAPE JUNk , velho alter-ego artístico que foi repescar ao baú da sua adolescência.
É certo que João Correia não fez sozinho o seu disco de estreia. Fez questão de convidar o baixista Nuno Lucas e o baterista António Dias (seus companheiros nos Julie & the Carjackers) para gravar a secção rítmica de The Good and The Mean, bem como o bluesman Frankie Chavez para abrilhantar algumas das canções com a sua inconfundível slide guitar. É verdade também que em palco os quatro formam um todo inseparável, funcionando como banda. Mas não deixemos que estas preciosas colaborações nos induzam em erro: no que diz respeito à escrita das canções (e à sonoridade do disco) TAPE JUNk é um projecto dolorosamente individual.
Se dissermos que The Good and The Mean convoca Frank Black e Silver Jews, no que estes têm de reinvenção indie do velho country, estamos ainda a dizer muito pouco. Se acrescentarmos que o rockabilly e o western spaguetti dão uma importante segunda demão às canções, continuamos ainda a apalpar o disco às cegas. O que o álbum de estreia de TAPE JUNk nos dá é outra coisa: um pouco de verdade. Sempre que ouço o disco lembro-me do repto lançado por John Lennon numa canção sua de 1971: “Gimne Some Truth”. Começa logo pela capa: a criança que vemos triste a olhar para nós nada tem de vaga ou abstracta: é o próprio João Correia em pequeno, a única foto que restou da sua infância, um statement de autenticidade e de exposição pessoal. Verdade também na produção despojada e espontânea do disco, quase sempre gravado ao primeiro take, sem truques de estúdio a corromper o feeling original das canções. E verdade nas letras, uma reflexão magoada sobre o nosso lado mais sombrio: do egoísmo à culpa, da cobardia e falsidade ao sabor acre da perda.
A melancolia não é, no entanto, bebida de um só trago. A primeira metade do disco é até falsamente bem disposta: “So here one story I can’t tell/ I’ve been the reckless sinner and I was on my way to hell/So I packed my shit and hit the road/but on my way to righteousness/I stopped for beer and smokes”, canta TAPE JUNk no single “Buzz”. O humor tem aqui uma função psicológica, uma tentativa nunca inteiramente conseguida de suavizar o tom emocional. Talvez toda a encenação outlaw country (a pistola, o gatilho, a picareta, o whiskey…) vá no mesmo sentido: criar um distanciamento para a catarse emocional não doer tanto. Mas à medida que o disco se vai aproximando do fim, as canções vão ficando cada vez mais sombrias, como se os mecanismos de defesa antes tentados já não surtissem efeito. Porque às vezes, nas nossas vidas, façamos o que façamos, “our life’s worth as much as this bottle of gin” – como é cantado em “Ain’t no shame in my game”. Quando isso acontece é pôr a cassete de TAPE JUNk no rádio do velho Cadillac, pôr o volume no máximo, e subir a estrada de terra batida prego a fundo. Com um bocado de sorte, não há nenhum precipício do outro lado.