Com Chuck, o pai do rock sai de cena e desta vida como sempre a viveu: a curtir, a rockar, a celebrar, chegando ao céu de guitarra em punho e a fazer o seu famoso “Duckwalk”.
Se, bem ou mal, já não há quem tire a Elvis o trono de “Rei do Rock”, não haverá dúvida em qualquer espírito iluminado sobre quem será o “Pai do Rock”: o inimitável Chuck Berry.
Ainda ia a década de 50 a meio e já Berry desbravava caminho, aliás, rebentava caminho, com a sua guitarra a disparar riffs mortíferos que dariam o decisivo impulso para a conquista mundial do rock enquanto verdadeira religião dos pagãos de todo o mundo. Começando com “Maybelene”, o primeiro single a fazer mossa, e passando por clássicos absolutos como “Johnny B Goode”, “Roll Over Beethoven”, “Sweet Little Sixteen” e tantos outros temas, a primeira década de produção de Berry foi absolutamente demolidora.
A sua vida foi marcada pelo rock, e não apenas em cima do palco. Berry cantava o que vivia, e vivia o que cantava. Mulheres, guitarras, carros rápidos, copos e problemas com a polícia, Chuck Berry foi o verdadeiro rocker primordial.
A sua produção foi decaindo, ainda que, nos anos 60, a sua fama não sofresse. Aliás, a devoção de dois jovens conjuntos britânicos – de seus nomes Rolling Stones e Beatles – assegurou que o nome Chuck Berry continuava a ser falado e descoberto.
A partir dos anos 70 foi perdendo gás, perdendo visibilidade. Talvez porque a indústria tivesse mudado, talvez porque Chuck fosse um sujeito difícil, que preferia pegar na guitarra e ir tocar a este e àquele bar, em vez de embarcar numa qualquer digressão gigantesca que lhe daria muito dinheiro, sim, mas também outro tanto a agentes e malta de quem desconfiava. Berry toda a vida foi um “hustler”, a ganhar o seu pão por si, noite após noite, de guitarra suada nas mãos.
Ficou famosa a sua quase participação no Festival de Monterey, em 1967. Estava tudo certo, até lhe dizerem que todos os músicos doariam o seu cachet para a caridade. “Caridade?! Chuck Berry só conhece o nome de uma caridade, e ela chama-se Chuck Berry. 2 mil dólares!”. Não participou, e nunca se arrependeu.
Fazemos esta longa introdução porque, no caso deste Senhor, o mito é tão importante como a música. Berry gravou o seu último disco de originais em 1978, e tocou todas as semanas até 2015. Então, aos 88 anos, retirou-se, e o mundo pensou que tinha ouvido as últimas notas.
Até que, já este ano, chegou a notícia de um disco novo de Chuck Berry, com edição marcada para Junho. O mito estava de volta. Mas os homens que carregam o mito são feitos de carne e osso, e a última ironia da vida de Berry foi ele falecer dois meses antes da edição do álbum, aos 90 anos de idade.
É, por isso, inevitável olharmos com outro peso para este Chuck, o último disco da lenda (é bem provável que comecem a surgir sobras em catadupa para edições póstumas, mas isso já é outra história).
Charles Berry Jr, filho de Chuck, tirou as dúvidas à Mojo: o seu pai não preparou este disco como o seu último grande ‘statement’ musical e de vida. “Ele apenas queria lançar um disco”, coisa que há tanto tempo não acontecia.
É natural, ainda assim, procurarmos pistas num disco tão raro e tão final, tentarmos encontrar palavras de sabedoria e resumos de vida de uma figura tão gigante. Mas não temos nada disso em Chuck. Temos Chuck, e isso basta-nos.
Nas últimas décadas, Berry foi gravando maquetes de muitos temas no seu estúdio caseiro, alguns dos quais surgem neste disco. Ao longo de dez temas, oito do quais originais, o que ouvimos é, sobretudo, uma grande alegria em tocar música, num ambiente que nos remete sempre para um concerto num qualquer salão fumarento do sul americano.
Temos Berry a homenagear Berry (“Lady B. Goode” responde ao Johnny do início da carreira, com um riff quase tirado a papel químico), temos blues movidos a piano em “3/4 Time (Enchiladas)”, há um terno dueto com Ingrid Berry, a sua filha. Há muita outra família de Berry neste disco, que soa de facto como um trabalho de alegria e de amor. Há também, de forma quase surpreendente, a presença de dois convidados de peso: Gary Clark Jr em “Wonderful Woman” e Tom Morello em “Big Boys”. É curioso terem sido estes dois mais jovens guitarristas a conseguirem o passe para entrar na toca do mestre, mas a sua presença nunca é impositiva, antes pelo contrário. Entram para jogar na equipa, e nunca se atrevem sequer a tentar brilhar mais que Berry, o pai de todos.
Chuck Berry nunca teve mais ambição do que compor e tocar o seu rock rebelde, nunca procurou complicar aquela raiz, nunca quis “evoluir”ou seguir modas que o tornassem mais visível aos olhos de gerações mais novas. Chuck é um disco de 2017 como podia ser um disco de 1957, com Berry a divertir-se à grande tocando o seu belo rock e o seu belo blues. E ainda bem.
Até sempre, Chuck. E obrigado por tudo.