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Cassete Pirata: semear ventos para colher a bonança

Estivemos à conversa com João Firmino, vocalista e compositor dos Cassete Pirata, sobre o disco conceptual, urgente e profundamente português, que acaba de lançar com os Cassete Pirata.

A Semente não é só um dos melhores discos lançados em Portugal este ano. É também um documento que deve ser guardado com cuidado na melhor estante, ao lado de enciclopédias e livros de História. O álbum começa com um canto. Apenas a voz de um homem, com eco nos montes e vales de um país com 900 anos. A certa altura entram uns tambores, tribais, ancestrais. Juntam-se umas guitarras que podem ser eléctricas mas soam a braguesas, acaba com uma parede de som e coros. E não sabemos em que Era estamos, sabemos apenas a que território isto pertence. E assim, em pouco mais de quatro minutos e uma só canção, está representada uma nação e seu cancioneiro intemporal.

Só que esta ideia de começar um disco com uma voz acapella, mais ainda numa banda de quem esperamos rock a abrir, causa algum desconforto. Porém, «foi consciente porque o desconforto também eu o sinto, eu ainda mais porque é a minha voz». João Firmino, que aqui assina como Pir, para distinguir da sua outra vida enquanto guitarrista de jazz, sentou-se para uma conversa sobre A Semente, novo álbum de Cassete Pirata, que nasceu de algumas decisões difíceis. «Hoje em dia fica tramado, consumindo baseado num algoritmo de uma plataforma que privilegia um certo tipo de canções, se calhar como a “Pirâmide“… mas eu a partir do momento que senti que tinha duas ou três canções que iriam funcionar como singles e como canções isoladas da narrativa (…) também me preocupei menos com a outra parte, quem quiser ouvir o disco na íntegra, vai ouvir o disco na íntegra e aí, acho eu, vai fazer sentido as opções que tomámos, ou mesmo que não façam sentido vão entender por que é que foram tomadas assim. E eu só fiquei realmente em paz com a primeira quando o disco dá a volta, e quando acaba a última música e aquela é que é outra vez a primeira, e aí senti a narrativa circular e senti que, no fundo, era assumidamente essa provocação para quem também se pôs a jeito para ir ouvir o disco todo. Nunca são decisões fáceis, o alinhamento de um disco. Aquela música, pela opção que tomámos de fazê-la crescer assim, ela seria sempre um caso bicudo para a integrarmos no disco mas eu fico contente de termos tido a coragem de a pôr como primeira música».

Apresentada que está “A Raiz”, sigamos para o resto do álbum. Depois de um óptimo trabalho lançado em 2019, A Montra, o segundo disco já estava a ser idealizado na altura em que o corona vírus obrigou a fechar tudo em suas casas. Então, de certa forma, este disco é filho do confinamento. Também durante o lockdown, João Firmino foi pai pela primeira vez. Semeou, e em pouco tempo deu à luz duas crias. E é impossível desentrelaçar uma de outra, os medos e esperanças que de repente surgem e ajudam a mudar a mundividência. Vem então um álbum conceptual: «O conceito do disco e a presença dos títulos que nos levam para uma coisa mais rural, um mundo mais natural, tem a ver com esta sensação meio crise de idade, que eu acho que estou a passar e sinto que a minha geração está a passar. Principalmente eu que vim de Coimbra e vivo assim um bocadinho nos arredores, muito perto da cidade e sempre estudei no centro, mas é uma aldeia. E passei a minha vida a querer sair dali, a querer vir para Lisboa estudar e depois fui estudar para Amesterdão e a querer ir descobrir a metrópole e o mundo cosmopolita. E chega aqui a uma idade – principalmente com a ideia da vinda do meu filho – em que começas as pôr as coisas um bocado em causa, e a pesar: quanto desta escolha que há na cidade é que eu ainda aproveito? Uma coisa é quando tens 22 anos, faz muito sentido estares a viver no Bairro Alto, mas principalmente quando vêm os filhos ou quando todos os nossos amigos já têm um estilo de vida que se calhar já não é tanto ir sair à noite, é mais uma almoçarada ao domingo.. então todas essas coisas estão a começar a aparecer na minha vida e olhar para a vinda de um filho e perceber que ele não vai ter uma experiência tão ligada à natureza como eu tive assusta-me um bocadinho, angustia-me um bocado».

Ligação dos pés à terra e títulos de canções como “Semente”, “Raiz”, “Árvore”. Um disco conceptual que é antecâmara de uma ópera rock e é, principalmente, um manifesto amplo, não apenas ambiental ou social. E a ideia que agora se concretizou, já tinha raízes antigas, foram apenas aceleradas agora. «Eu fiz campos de férias em adolescente, em que o conceito era muito esse, pessoas e a natureza, e as pessoas se estiverem no mundo natural e se houver tempo e espaço contemplativo para estarmos juntos, conseguimos tirar o melhor de nós e relacionar-nos também melhor. Portanto todas essas ideias já andavam no meu peito, a vinda do filhote fez esse bater do peito ainda mais forte e depois, lá está, é inevitável… embora não haja pudor nenhum de os Cassete falarem de amor e de sentimentos e às vezes coisas assim um bocado mais pop chiclete, para mim estes últimos 4/5 anos do mundo foram uma confusão, foi tudo muito rápido, o surgimento da extrema direita, a urgência climática de que sempre se falou mas agora fala de uma maneira diferente, com uma urgência diferente, de repente um ícone adolescente que todas as semanas se vai manifestar para alertar a classe política, que tem noção que quando chegar à meia idade como é que estará o planeta, isso são tudo coisas que.. a dada altura nem sequer precisas de fazer grande força para tentares ter um bocadinho mais uma postura de intervenção (…) Eu já queria fazer um disco conceptual, todas as bandas de que eu gosto dos 60s e 70s fizeram, portanto era um exercício de desafio, e um treino para eu no futuro escrever a minha ópera rock, gosto muito do Jesus Christ Superstar e do Tommy dos The Who e do Hair, então um dia adorava poder fazer uma coisa dessas com os Cassete Pirata. E aqui foi um bocadinho um treino, vou tentar fazer uma coisa que desse para passar para um filme musical».

A trama adensa-se. E entra em cena o substantivo que dá nome ao disco. «Uma das primeiras coisas que foi composta do disco foi o refrão da “Semente”, que tinha essa mensagem “olha lá que a semente é da gente que a mantém”, eu lembro-me de na altura ler sobre um reservatório de semente, as mais antigas que estão guardadas não vá um dia a Monsanto ou alguém manipular geneticamente qualquer coisa e já não haver arroz bom e maçãs boas, e eu lembro-me de pensar nisso. Saindo um bocado do conceito da semente mesmo, literal, o que é que nós como Humanidade estamos a manter das sementes antigas, porque a dada altura nesta era de informação tão rápida dá a sensação que estamos a dar tiros nos pés atrás de tiros nos pés. Perdemos muita coisa que já estava boa, claro que há muita coisa que temos de mudar, temos de progredir, mas também há coisas que estamos a desaprender, parece que já foi melhor. E então esse refrão, que não estava feito com o resto da música, foi das primeiras coisas a surgir, portanto eu já sabia que queria sobre isso. Eu acho que realmente se materializou quando eu consegui arranjar que o conceito era essas três gerações, quando consegui perceber essa arquitectura – que havia músicas, elas falavam todas da mesma coisa, mas o que lhes dava o ritmo e a narrativa é que havia uma geração que claramente era um olhar mais maduro, com o lamento mais maduro; claramente havia umas que tinham um teor mais rock, mais pesado, mas revoltado, que seriam a geração que hoje em dia vive a adolescência: “vocês andaram aqui a usar do bom e do melhor e nós vamos ficar com esta porcaria toda estragada”; e depois a voz da nossa geração, ou da geração de meia idade como eu agora me sinto, que está aqui um bocado só confusa, só cansada e sem grandes respostas, no fundo. E portanto, pelo menos eu sinto que há uma certa desilusão com as carreiras, uma geração que se dedicou muito às carreiras e à imagem que a profissão define de nós, e se calhar chegar aqui a uma idade em que todos estamos a perceber que “epá, afinal era só isto”. E pronto, toda esta coisa de como é que lidamos com a saúde mental, como é que lidamos com estes ímpetos da sociedade moderna capitalista de sermos super-produtivos, como é que sentindo falta do campo e de uma vida mais contemplativa conseguimos arranjar um equilíbrio, e como é que vamos tomar melhores decisões para os nossos filhos não irem viver num planeta todo desregulado. E pronto, é uma história que eu espero que as pessoas que o ouçam não… a ideia nunca foi estar a achar culpados ou a meter o dedo na cara a ninguém, mas simplesmente um desabafo ou um ponto de vista de alguém que se sente inevitavelmente um bocado ansioso e um bocado acossado com esta contemporaneidade».

A Semente é um disco que espelha preocupações mas sem entrar em pânico, revela algum desencanto mas sem ser desolador, aponta para caminhos mas sem ser moralista. «Há refrões que vêm dizer “depois não venham dizer que estavam a torcer por nós”, mas depois também há um a dizer “faz diferente na corrente que aí vem”, eu também sinto que nós temos acesso, à informação, não é uma coisa de Portugal é do mundo, esta pandemia veio mostrar-nos na perfeição que não é só… claro que a competição traz valor e as pessoas se excedem, mas mais valor e mais riqueza traz a cooperação, não vale a pena estarmos todos vacinados aqui se há partes do mundo que ainda não estão, a malta vai perceber isso agora, acho eu, muito claramente. Portanto acho que é um disco que aponta as preocupações mas acho que acima de tudo – espero que as pessoas o entendam assim – ainda com uma coisa de esperança, «sonha uma utopia», «pega na tua malta», porque com as pessoas e com o amor a Humanidade sempre conseguiu resolver-se, sobreviver e superar-se. Eu acho que não há grandes razões para não conseguirmos, claro que, lá está, vai das coisas maiores, das grandes organizações mundiais à nossa vida, à maneira como nos relacionamos com os nossos amigos e como é que.. no fundo voltar a conseguir ter um certo associativismo que se perdeu. Se calhar agora reformulado, sem bandeiras políticas, sem nós contra eles, os bons contra os maus, uma coisa um bocadinho mais simples que eu ainda não tenho bem a visão de como é que vai acontecer mas que espero que a nossa geração venha a conseguir trazer algumas respostas. E se este disco, obviamente de uma forma utópica, conseguisse por algum motivo ser um bocadinho um mini-hino para essa vontade, para esse movimento, então utopicamente vá, teria sido esse o objectivo».

Quando ouvimos este disco é impossível não lembrar uns Procol Harum ou Moody Blues, conceptualistas internacionais. Mas mais que essas referências anglófilas, A Semente é um disco militantemente português. «Quando eu comecei Cassete, nunca tinha cantado nem tinha escrito letras, muito menos em português. E a título pessoal tem sido uma viagem mesmo inacreditável. (…) E trabalhar na minha língua, aproximou-me ainda mais da minha gente, porque não há nada mais honesto do que tu cantares na língua que as pessoas falam e ouvem e em que têm memórias. É com esta língua que as pessoas olham o mundo. E então, depois da Montra houve uma vontade muito grande, que obviamente também tem a ver com os meus artistas contemporâneos, autores e cantautores, malta que como eu está com a mesma vontade de artesão, de olhar para o Fausto e para o Zeca e para o José Mário e perceber o gigante que eles foram a olhar o seu tempo. E nem sequer posso dizer que foi uma coisa assim tão consciente mas eu fui sentindo vontade de ir ouvir de novo esses discos da malta portuguesa mais antiga (…) e lembro-me de ouvir um trecho de uma entrevista, já não sei quem é que foi, se o José Mário Branco ou o Zeca Afonso, a falar sobre o aparecimento do Giacometti na sua vida e de ter feito essa pesquisa dos cantos populares e da música popular ancestral que havia pelo país fora e de que aquilo para eles foi tipo “ok, parte do trabalho está feita, é isto que temos de fazer, é por aqui que nós temos que ir”. E fez-me todo o sentido, se aquilo que eu estava a sentir era um bocado “para onde é que estamos a caminhar, esta coisa cosmopolita e moderna também tem uma data de side-effects super negativos, se calhar éramos mais felizes com menos acesso às coisas mas tínhamos acesso às pessoas”, então fez-me sentido ir buscar um bocadinho, quer na maneira como as letras se desenvolvem e o tipo de linguagem, quer nas melodias, fui direccionando por aí. E também na vontade de trazer alguns elementos novos para um disco novo de Cassete eu senti que teria de ser por aí, o trabalho das vozes, dos coros e também essa questão da voz sustentável, em que a voz consegue levar muita da raiz da canção sozinha, obviamente Cassete vive muito dos arranjos em banda, a espremer muito a banda, e aqui o sumo da canção estar logo ali, numa melodia acapella».

Como se disse no início desta entrevista, João Firmino quis subverter as regras do jogo: «Às vezes até é uma cena meio de pirraça ou uma maneira de te protegeres de algumas inseguranças: “ah o segundo disco da banda é super importante porque agora é que se vai tirar a prova dos nove então tens de ter super canções”. Ai é? Então eu vou fazer um disco conceptual e vou estar a pensar nas canções doutra maneira. Não quer dizer que eu… não quero parecer purista ou desinteressado, quem se apaixona por canções obviamente está sempre preocupado que o refrão seja bom e obviamente está sempre preocupado que a música agarre, porque é essa a grande beleza das canções, é ouvir um refrão e ficar a cantarolar e não conseguir tirar aquilo da cabeça. Portanto claro que há essa vontade, essa paixão por fazer isso, mas no meu caso eu gosto tanto tanto do que a malta andou a fazer nos 60s e nos 70s, mesmo que me digam que já não faça sentido, é o que eu quero fazer, fazer as coisas para quem ainda ouve discos inteiros, e para quem ouve o disco e vai recomendar a um amigo, e para quem ainda quer ouvir na vontade e na certeza que o artista teve cuidado em deixar ali coisinhas para uma segunda, uma terceira audição, ou ouvir o mesmo disco daqui a 10 anos e descobrir ali outras coisas. Eu ainda tento fazer as coisas assim, porque é o que eu gosto».

A Semente tem 11 músicas, 40 minutos e não é só um dos discos mais inspirados de 2021 em Portugal – é um dos discos mais inspirados em Portugal nos últimos muitos anos. Já desconfiávamos quando ouvimos o EP de estreia em 2017, mas depois de ouvir A Semente (e de conversar com João Firmino), confirmámos as suspeitas: não se poderá escrever a história do rock português do século XXI sem incluir os Cassete Pirata entre os mais proeminentes.

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