Trata-se, sobretudo, de um belíssimo adeus. Um até sempre rumo à eternidade. As palavras sempre soaram redondas na voz de Carlos do Carmo. E ainda assim permanecem…
Há muito que não víamos em Carlos do Carmo apenas um homem da cidade. Ganhou outro estatuto, foi construindo um caminho inatacável pelo fado, pelas margens do fado, pelo avesso do fado, moldando-o à sua particular e exímia forma de cantar. O fadista já não era só fadista, e foi-se tornando, ao sabor da passagem dos anos, um cantor de palavras, das mais belas que soube escolher. Parece que sempre teve essa ambição, a de se tornar um fadista dos mais belos versos, dos melhores poetas, sobretudo daqueles que escreviam numa outra medida que não a que ao fado mais convinha. Procurava, como ele próprio dizia, um deslize dos poetas pouco cantáveis, digamos assim. Terá sido dessa forma que apanhou na sua teia o sombrio e distante Herberto Helder, o poeta que dizia, sobre a vida, “que nunca se sabe aquilo que basta”. Diz-se ainda, que Carlos do Carmo estaria convicto de que um dia cantaria esse velho e escondido bardo, o que acabou mesmo por acontecer nos últimos instantes da sua existência. Tinha razão, o autor de Poemas Canhotos, quando afirmou que se escreve por se estar à espera de que algo vai forçosamente acontecer. E é claro que sim. Como se vê (e se ouve), tinha razão.
E Ainda… é um disco gourmet. São nove, as canções que lhe dão corpo. Nove temas em pouco mais de vinte e três minutos. É bem curto, o álbum, isto se não contarmos com os importantes silêncios que o povoam. Mas esses, de tão necessários, não contam, uma vez que é dentro de cada um de nós que moram, ou que passarão a morar. É que os versos, como bem sabemos, sobretudo se nutritivos, são de lenta digestão, e podem demorar uma vida inteira até se tornarem luz, ou chama, ou em qualquer outra matéria incandescente. Ouvi-los é como lê-los, arrastando-se depois, melodicamente, em nós, até encontrarem o seu espaço. Isso demora tempo, por isso E Ainda… demorou uma vida inteira até ser feito. Como se prova, ao contrário do que se afirmou, é bem longo o álbum final de Carlos do Carmo.
Há muito que não víamos em Carlos do Carmo apenas um homem do seu tempo. Pertencer à eternidade está ao alcance de poucos, e por isso é bom que saibamos que terreno pisamos, quando escrevemos sobre ele. Sobre ele e sobre outros que lhe deram a matéria deste final de canto. Hélia Correia (quem diria?!), Júlio Pomar (que surpresa!), Saramago (pois, quem suspeitaria?!) o próprio Herberto, como já fizemos notar. Mas também de outros, igualmente caminhantes, como Carlos do Carmo, pelos enredos das canções e dos versos. Sophia, Graça Moura, Jorge Palma. Depois, a vontade de os cantar ditou o percurso e virou-se a página, como um dia teria de acontecer. Mesmo a ele, que sempre tentou fugir aos fatalismos que a expressão fadista legitimou desde que existe fado.
E Ainda… é um trabalho de despedida. Uma despedida de alguém que sabia estar quase a partir. Por isso é frágil, mas também forte. Por isso é precioso, sobretudo por ser um espaço onde se finta a inconveniência da morte. É o trabalho de toda uma vida que termina com “um sorriso traquina”, como tão bem soube cantar n’ “Os Putos”. Que bonita vingança!
Em jeito de nota de rodapé, uma última ideia. No poema “Sombra”, a terceira faixa do álbum, Carlos do Carmo canta os versos da poeta Hélia Correia, que um dia escreveu A Pequena Morte / Esse Eterno Canto. Dizem assim: “No mais profundo de nós / Onde ninguém se aventura / Anda a canção à procura / Da voz que lhe há-de dar voz”. Resta, portanto, a pergunta: haverá síntese mais perfeita para este último disco de Carlos do Carmos, para esta última dádiva que nos quis deixar? Ouça-o bem, e responda da forma que lhe parecer mais justa.