Carga Aérea chega e impõe-se. Instala-se aos poucos, acomoda-se e já não parte para qualquer outro lugar. A implosão que provoca no ouvinte é irreversível.
Ocorrência em Aberto é uma monólito sonoro de média dimensão. Dura trinta e dois minutos e dez segundos, e apresenta-se em dosagem única, uma vez que ocupa a totalidade deste primeiro lançamento de Carga Aérea. Como sempre acontece em obras deste género e desta envergadura, o que se pode ouvir neste disco (é fácil de perceber) não será aconselhável a todos os ouvidos. Muito menos será algo para ser escutado em todas e quaisquer ocasiões. É bom que tenhamos isso em conta quando nos predispomos a escutar o que Francisco Marujo (o nome por detrás de Carga Aérea) tem para nos oferecer. Para além da música (já lá iremos), o autor desta obra convida e encoraja o ouvinte a ter uma postura ativa de defesa do planeta, algo bem explícito na página de apresentação do projeto. Mas, por agora, o que verdadeiramente importa é saber o que podemos encontrar neste particular objeto sonoro. Mais ainda: que efeito, a médio e longo prazo, terá no ouvinte a audição de Ocorrência em Aberto, uma vez que há sempre algo que fica, que permanece, algo poroso que se vai entranhando aos poucos, audição após audição.
Sou ouvinte de obras que vão na mesma linha desta. Assim sendo, é inevitável lembrar-me de outros discos quando ouço esta primeira e séria proposta de Francisco Marujo. Avanço apenas com quatro, dois deles muito próximos na autoria, pois Chris McGrail é o elo de ligação entre ambos os discos: The Creep, da banda Slomo, e Collecting Earthquakes, de Holy McGrail, mas também Zero Beats Per Minute, do projeto Anal, e Odin, de Julian Cope . Mas Ocorrência em Aberto tem vida própria, personalidade bem vincada, embora mutante, começando num determinado sentido, e acabando já numa outra direção. Tudo isto de forma quase impercetível, esquiva, notória apenas se não desviarmos a atenção daquilo que escutamos. É o tipo de trabalho que exige muito do ouvinte, pois nele residirá, forçosamente, a capacidade de desmontar, de esculpir o robusto bloco de som que parece respirar à nossa frente como se fosse uma criatura viva.
Ocorrência em Aberto começa, continua e mantêm-se quase sempre numa mesma velocidade. Parece música em slow motian. Os menos conhecedores poderão mesmo dizer que é música onde nada acontece. Outros nem sequer a vão entender como sendo música. Engano puro, em ambos os casos. O que se ouve é feito para que a mudança ocorra no ouvinte e não verdadeiramente naquilo que se ouve, na peça sonora em si mesma. Trata-se, em última instância, de um trabalho que provocará no ouvinte uma espécie de implusão interior, e para que isso aconteça será fundamental que toda a nossa atenção se foque nas subtilezas sonoras que vão surgindo aos poucos, à medida que avançamos na faixa única deste trabalho de Carga Aérea.
Devagar, quase parando, o álbum trilha um mesmo caminho, embora em intensidade evolutiva. São poucos os pequenos rasgos de subtilezas que se ouvem e que furam um ruído maior e omnipresente que tudo parece ocupar. Até que, por volta do vigésimo segundo minuto, por entre imensos lençóis de brumas sonoras, surge uma bonita e melodiosa alvorada, tímida, insegura, mas que vai crescendo aos poucos até perfazer o tempo total desta pequena odisseia. Chegados ao fim, percebemos que poderíamos ainda estar no início (é aqui que a expressão “ocorrência em aberto” faz todo o sentido), como também percebemos, verdadeiramente, o sentido circular desta peça sonora.
Há que dar os parabéns a quem arrisca experimentalismos deste tipo. A música ambiental continua a não ter em Portugal a merecida projeção, mesmo havendo nomes (como o de Brian Eno, por exemplo) que teimam em mostrar ao mundo as maravilhas das suas imensas potencialidades. Mas a surdez seletiva é uma coisa tramada, como bem se sabe. Há que contrariar este estado de coisas. Há que ouvir esta “Ocorrência em Aberto”. Mas sempre sem pressas, sem alardes, até porque sabemos que uma vez ouvida, ela ficará connosco até ao fim dos dias.
- nota final, em jeito de declaração de interesses: o Francisco Marujo é um dos nossos colaboradores, o que fez com que a minha opinião em relação a este seu trabalho fosse ainda mais imparcial e exigente do que costuma ser. Essa foi a premissa que impus a mim próprio. Só assim faria sentido escrever sobre Ocorrência em Aberto. A lucidez e a procura da nossa mais íntima verdade são sempre as melhores formas de julgamento. Aqui ou em qualquer lugar por onde passemos.