Uma maravilhosa blasfémia contra os próprios dogmas dos Smiths.
Os três primeiros ábuns dos Smiths, somados aos singles certeiros lançados nos entremeios, mudaram tudo no panorama musical britânico, transformando o pós-punk e a synthpop em relíquias pré-históricas. O culpado não foi apenas a voz de anjo amuado de Morrissey e suas letras diabolicamente inteligentes; foi também Johnny Marr, que criou toda uma nova linguagem para a guitarra na pop. Estavam assim erguidas as próprias fundações estéticas sobre os quais o indie ainda hoje se alicerça.
O quarto e último capítulo, Strangeways, Here We Come, é uma corajosa traição a esse legado, sacrificando estoicamente a riqueza melódica da guitarra de Marr. Os seus dedilhados inventivos e sofisticados ainda assomam mas são agora mais discretos, muitas vezes acústicos, abrindo um espaço enorme para que as teclas e outras texturas de guitarra se distendam à vontade. Estamos, pois, situados em plena blasfémia, com todos os dogmas que fizeram dos Smiths o paradigma do indie moderno a serem deliberadamente vilipendiados. Eis a lista de crimes.
Primeiro mandamento: os Smiths terão sempre guitarra. Ora, é logo no próprio tema de abertura, o elegante “A Rush and a Push and the Land is Ours”, que esta lei não escrita é quebrada. O curioso é que as teclas são tão orgânicas e saborosas que ninguém dá pela falta da guitarra de Marr.
Segundo mandamento: os Smiths nunca farão solos. Pois bem: um maravilhoso solo de guitarra de Marr acontece em “Paint a Vulgar Picture”, uma verdadeira obra-prima da simplicidade. E em boa hora ele aparece, salvando o tema menos interessante do disco da total inconsequência.
Terceiro mandamento: os Smiths nunca farão jams e Morrissey nunca tocará a porra de nenhum instrumento. Dois em um: o final da “Death of a Disco Dancer” é uma maravilhosa jam onde Morrissey toca (ou tenta tocar) piano. Uma neurótica viagem onde a harmonia inicial se vai desmoronando, com cada instrumento colidindo contra o outro quais carrinhos de choque.
Quarto mandamento: os Smiths nunca serão uma banda de estúdio. Ora, se há álbum em que os Smiths usam e abusam do estúdio para construir uma sonoridade polida e requintada, esse álbum é: Strangeways, Here We Come. Mas mesmo burguês, de charuto e cartola, há sempre uma simplicidade pop que os impede de cair na pompa excessiva. Uma orquestra aparece, é verdade, na ponte de “Girlfriend in a Coma”; mas apressa-se a fugir, envergonhada de tanta seriedade.
O quinto mandamento é batota mas vocês não se vão importar: vozes de operários serão interditas numa canção dos Smiths. Lei escandalosamente violada na introdução da desesperada “Last Night I Dreamt that Somebody Loved Me”. Sim, aquele vozear de fundo que acompanha as melancólicas teclas de Marr são palavras de ordem de mineiros britânicos em greve. O resultado é, mais uma vez, encantador: uma atmosfera misteriosa e apocalíptica que nos abre o peito, deixando o coração a céu aberto.
Marr sacrifica tudo o que é mais sagrado nos Smiths no fogueira destas experimentações. Estranhamente, resulta. De sacrilégio em sacrilégio, faz-se um dos melhores discos dos Smiths. Com os dogmas estamos às escuras. O fogo da blasfémia alumia sempre mais.