A quarta edição do Capote à Sombra, em Évora, cumpriu mais uma vez o seu bonito desígnio: divulgar a nova música portuguesa de qualidade, num ambiente descontraído e acolhedor.
O sol de Setembro, em Évora, estava agreste, queimando e amolecendo. O refúgio no Capote à Sombra, no Jardim dos Colegiais, foi uma benção refrescante. Sentados na relva, bebericando um gim, banhando-nos no quase jazz de Marie Anne – novata ainda, ternamente tímida, pedindo-nos desculpa por escrever tão bem. Nunca ouvíramos na vida o single “Monet” e já o cantarolávamos, felizes. Quando dedicou o tema “1965” ao avô, veterano da Guerra Colonial, sentimos um embaraçoso carinho (maldito langor do vinho e das mantas!). Os devaneios da guitarra sabiam a whisky com cola no Hot Clube. O baterista tocava docemente com duas vassourinhas, não fossem as crianças de colo acordar. A Luísa Sobral não estava na relva mas iria gostar.
E enquanto fomos buscar uma empada de espinafres e mais uma mini fresquinha, já o indie pop dos Perpétua tocava, que a malta de Ílhavo e da Gafanha da Nazaré é despachada. A cantora e teclista, Beatriz Capote, tem o mesmo nome do festival, devem ser primos ou assim. A sua voz é fresca e despretensiosa, como fresco e despretensioso é o som dos Perpétua. A guitarra ora faz arpejos indie à Real Estate, ora groova como se não houvesse amanhã, à Chic. Nasceram na semana passada, e, por isso, são retro, evocando o disco sound dos 70, e as teclas chiclete dos oitenta. Quando tocaram a soalheira “Perdi a Cor”, vários espectadores colocaram protector solar. E como a gente de Ílhavo cuida dos seus, reinventaram dois clássicos do Carlos Paião, substituindo a manhosa produção original com arranjos de um irrepreensível bom gosto. Acabaram com “Falei de Cor”, um tema mais abrasivo, que vai acumulando tensão, até explodir num mar de distorção shoegaze. Irra que os bandalhos são versáteis…
Eis que então chega o cabeça-de-cartaz :Papercutz, mais electrónico e cosmopolita, cantando na língua da falecida rainha. Se quem está debaixo dos holofotes é a maravilhosa Catarina Valadas, é o portuense Bruno Miguel que urde tudo na sombra, brincando com o teclado, manipulando uma parafernália de botões. Netos da synthpop, filhos do trip-hop, irmãos do R&B contemporâneo – é toda uma linhagem de pop electrónica que é convocada, metade humana, metade máquina, familiar e alienígena ao mesmo tempo, como quem anda a comer a cyborg mais gira da escola.
As melodias trauteáveis, orgulhosamente pop, são tingidas com pinceladas negras (vindas de recantos obscuros da alma) e exotismos orientais (vindos de recantos obscuros do mundo). Por vezes, Bruno também canta, entrelaçando a sua voz discreta no vozeirão de Catarina Valadas, num feliz jogo de contrastes. Catarina também harmoniza consigo própria, dialogando com os ecos da sua voz em loop, qual Fernando Pessoa do electro-pop. Uma voz, por vezes, processada e espectral, como se a alma de uma máquina morta voltasse para nos assombrar.
Houve um pequeno percalço com o som, que ninguém reparou, exceptuando o perfeccionista Bruno, pedindo mais volume à voz de Catarina, que, astuta, aproveitou a ocasião para instruir o técnico de som… cantando. Deus escreve direito por linhas tortas. De um acidente sem relevância nasceu um dos momentos mágicos da noite.
Acabados os concertos, começou o djset de Selecta Alice, mudando por completo o estado de espírito do público. Se antes estávamos em modo chill out, refastelados no nosso pufe de relva, o groove frenético das escolhas de Alice obrigou a malta a levantar-se. As idas à banca do gim alentejano tornaram-se mais frequentes, combustível atirado para o fogo dos corpos, que dançavam com cada vez mais frenesim. Havia um fio condutor nas selecções de Alice: a chamada música do mundo, de África à América Latina, da música do Mali à cumbia da Colômbia, passando por muitas outras latitudes exóticas, quase sempre mescladas com as mais modernas electrónicas, sempre ao serviço de sua majestade o ritmo. À meia-noite, qual Cinderela do gira-disquismo, os tambores do século XXXI deixaram de soar, o que gerou quase um tumulto na tribo dançante, que começou a gritar em uníssono: “ninguém acaba assim!, ninguém acaba assim!”. Lá teve a desgraçada da DJ-chamã de tocar mais um pouco de worldbeat, não fora a horda revoltosa destruir tudo com archotes e forquilhas.
Diz o povo que não se deve voltar a um sítio onde se foi feliz. Mas o sábio povo também diz os seus dislates. Fomos felizes debaixo da sombra do Capote. Para o ano, regressaremos, à felicidade, que só a copa de uma árvore antiga nos pode dar…
Fotos: Rui Gato