Gil Scott-Heron era um dos muito grandes, com uma influência sobre boa parte do rap e do hip-hop norte-americano, mas que nunca atingiu realmente um estatuto que lhe permitisse colher os respectivos louros.
Surgiu como escritor no final dos anos 60, conciliando a escrita com as típicas leituras de poesia da altura, que eram, muitas vezes, musicadas. Daí até aos espectáculos e à gravação de discos foi um pequeno passo. Por entre os confrontos raciais e a guerra do Vietname, Scott-Heron foi ganhando fama como um ícone da contra-cultura. Foi sempre escrevendo e gravando, com sucesso nas franjas do mainstream mas sem nunca chamar a atenção deste. O mais perto que esteve terá sido com “The Revolution will not be televised”, todo um manifesto racial e de justiça cívica em formato spoken word musical.
Os anos 80 e 90 foram duros para ele. Viveu nas ruas, caiu vítima do alcoolismo e da dependência de cocaína. Contraiu HIV e foi várias vezes preso, já com uma certa idade. Essa longa travessia do deserto terminou quando, em 2006, o patrão da XL Records, Richard Russell, meteu na cabeça que ainda iria fazer um disco com Scott-Heron. E fê-lo. Durante bastante tempo foram gravando, no registo típico de spoken-word por cima de uma cama jazzy, que marcou a sua produção gravada. E se, já com 60 anos, o seu tom de fúria de justiça social estava amansado, veio ao de cima a alma torturada, o homem que sofreu e que, lá dentro, sabia que pouco tempo lhe restava.
Acabou por morrer em 2011, não sem antes ter marcado não apenas o seu regresso à música, mas também aos livros. Do disco feito com Russell, I’m new here, escolhi dois temas dos mais despidos, e que mais me dizem pessoalmente. Falo de “On coming from a broken home (Part 1)” e “On coming from a broken home (Part 2)”, que abrem e fecham o disco, como capa e contracapa de um livro.
Em ambos, Gil regressa à infância, à sua infância pobre e dura de criança negra nuns EUA racialmente ainda segregados.
Na primeira, fala de como foi viver com a sua avó e como, dessa forma, viveu e cresceu numa casa sem um modelo masculino. Fala de Lilly Scott, a sua avó, de como ela contrariava todo o cliché da mulher negra submisssa, e de como agarrou naquele rapazinho e lhe deu tudo o que ele precisava: apenas amor, todo o amor. Como diz Gil nesse primeiro tema “mulheres criaram-me e eu fiquei crescido, antes de saber que vinha de um lar desfeito”. Porque isso era apenas um conceito, e Gil nunca sentiu essa fragmentação no seu dia a dia.
Na parte 2, a protagonista é a mãe de Gil. Mais uma vez a ausência, mas a ausência de noção disso. Gil explica, com aquela voz magoada e profunda de quem reza a quem lhe deu vida: “Demasiados lares têm a falta de um homem ou de uma mulher, sem terem a falta de amor. Eu vim do que eles chamavam um lar desfeito, mas se eles alguma vez viessem à minha casa, teriam visto quão errados estavam”. Peço-vos que ouçam com atenção às palavras deste homem, e não acredito que não sejam, também, comovidos.
Escolhi esta canção do dia por admirar Gil Scott-Heron, claro, e por achar que ele merece muito mais atenção do que teve em vida. Mas escolhi porque, também eu, fui criado numa casa com apenas duas mulheres, a minha mãe e a minha irmã mais velha. E porque hoje, homem feito, vivo numa casa com mais três mulheres: a minha mulher e as minhas duas filhas.
Esta é a minha homenagem às mulheres da minha vida, e à força das mulheres em todo o lado.
Parafraseando Gil Scott-Heron: “A minha vida foi guiada por mulheres; e graças a elas, eu sou um homem”.