O álbum de estreia dos Buraka Som Sistema, Black Diamond, não é só um grande disco de kuduro progressivo (com tudo o que isso implica de polirritmos frenéticos). É um retrato – e um horizonte – da Lisboa mestiça do século XXI.
A Lisboa contemporânea é mulata, caldeirão onde confluem muitas culturas. Mas o caldo cosmopolita ainda não foi inteiramente cozinhado, falta mexer tudo com uma colher de pau gigante. Não há só medo e conflito entre centro e periferia, há também invisibilidade, cada um vivendo na sua ilha, alheio ao que acontece fora dela. Um rapper da Quinta do Mocho pode ter um vídeo com um milhão de visualizações e ser um perfeito desconhecido no bairro de Alvalade. E a banda indie do momento, acarinhada pelos media tradicionais: olimpicamente ignorada nos bairros da periferia. Duas bolhas estanques e intransmissíveis.
Um dos géneros musicais que chega aos guetos da “metrópole” é o kuduro, nascido nos musseques de Luanda mas espalhando-se na diáspora africana. As especificidades do kuduro – groove impuro e moderno, africano e global ao mesmo tempo – criam resistências no seio da própria comunidade de origem africana. Para os imigrantes mais velhos, a sua electrónica é estranha, demasiado moderna e ocidentalizada. Para os que já nasceram cá – portugueses, portanto – pode ser demasiado africano, um obstáculo à inclusão.
Mesmo com todas estas reservas, o que é certo é que as cassetes de kuduro se foram espalhando, do mercado da Praça de Espanha para os bairros da grande Lisboa. Quem por cá pressente, antes de todos os outros, as suas férteis possibilidades é a malta dos Buraka Som Sistema. Faz sentido: sendo um colectivo de portugueses e angolanos, brancos e negros, afro-descendentes e tugas dos quatro costados, estão num lugar privilegiado para fazer esta síntese, a do novo som de Lisboa.
Têm outra vantagem: são cosmopolitas, atentos às últimas tendências musicais do mundo. E o que está a rebentar lá fora, na vanguarda da electrónica, são justamente as batidas dos guetos exóticos, do funk carioca ao kwaito sul-africano. O DJ Diplo e a cantora M.I.A. são alguns dos artistas que celebram estes novos beats, orgulhosamente contaminados, nativos e mundiais ao mesmo tempo.
Se dúvidas houvesse sobre a justeza do caminho escolhido pelos Buraka, depressa se dissiparam nos primeiros concertos, quando o público – mesmo o mais pálido e europeu – se deixou imediatamente contagiar pela sua frenética batida. Não interessa que as referências fossem estranhas: é uma música de tal forma física e lasciva e eufórica e festiva que até os pés de chumbo começam a dançar, esmagados pelo inescapável groove.
Se o habitat natural dos Buraka sempre foi o palco, o que é certo é que a vitalidade do seu álbum de estreia, Black Diamond, ajuda muito à coisa. Ao fogo original do kuduro – já sincopadíssimo – os Buraka regam-no com gasolina rave, incendiando tudo com crescendos e explosões acid house (com direito a sintetizadores aborrachados e tudo). Sirenes e batucadas tribais dão a estocada final. Quando o bombo electrónico quatro no chão chega (tum!, tum!, tum!, tum!) já não há sobreviventes…
A Lisboa de Black Diamond está aberta ao mundo, na confluência entre Luanda, Rio e Londres. De Angola e do Brasil vem o português das vogais abertas e a ocasional batida baile funk (a bazófia de Deize Tigrona em “Aqui Para Vocês” é um dos momentos altos do disco). Da chuvosa Londres vem o grime zangado de Kano (“Skank & Move”) e a lenga-lenga blasé de M.I.A. em “The Sound of Kuduro”. A voz é percussiva, metralhando sílabas zangadas, trocando quaisquer veleidades poéticas pelo puro ritmo.
Black Diamond nunca é oito, é sempre oitenta. Não há aqui sedução, há sexo. Não há dança, há transe. As letras não têm conteúdo social, não precisam: o desregramento dos sentidos – que a batida reclama – já é, em si, suficientemente política. Porquê? Porque aparta distâncias sociais, congregando os corpos, unidos no mesmo voluptuoso groove.
Fora da arena, não temos ilusões: os muros regressarão. Porém, a Lisboa orgulhosamente mestiça ficou como promessa. Caminhemos para lá, ao som do kuduro…