O álbum de estreia de Ricardo Villalobos, Alcachofa, é a grande obra-prima do techno minimal berlinense: monótono, perfeccionista, saboroso.
A relação da Alemanha com a música electrónica é longa. Afinal de contas, os alicerces do género foram fundados pelos Kraftwerk nos anos 70. Nos eighties, foi a vez dos americanos subirem a parada, inventando o house e o techno. Mas o bom santo à casa torna: no volver da década a cultura rave explode em Berlim, influenciados pela música que se fazia em Detroit e Chicago. Tudo coincide com a queda do muro (’89), de maneira que a reunificação se faz também na euforia das pistas de dança. Os armazéns abandonados de Berlim Leste foram ocupados, transformados em clubes de dança, com a simpática complacência das autoridades (que o tempo pedia). Respirava-se, por fim, liberdade.
As rendas baixas, e o ambiente de boémia e tolerância, atraem artistas e apreciadores de todo o mundo, transformando Berlim na capital mundial do techno. Os clubes não têm horas de fecho: as festas prolongam-se durante vários dias e várias noites. É o tempo da “love parade”, que em ’97 agrega um milhão e meio de pessoas nas ruas de Berlim, celebrando a loucura rave à luz do dia. Mas tudo o que é demais é moléstia: a chama underground original estava a ser transformada em mercadoria descartável.
É neste contexto que no final dos anos 90 surge a cena de techno minimal berlinense, uma reacção aos excessos histriónicos da cultura rave. No lugar da sua euforia quase azeiteira surge uma electrónica mais austera e regular, trocando os crescendos e as explosões eufóricas por uma atenção obsessiva ao pormenor. O nome mais importante da movida é Ricardo Villalobos, nascido no Chile mas criado na Alemanha (na sequência do golpe militar do Pinochet). Em 2003 faz o seu primeiro longa-duração, Alcachofa, obra-prima de Villalobos e pico criativo do techno berlinense.
À primeira vista, parece que nada acontece: o mesmo ritmo dura e dura, numa monotonia… como dizer… germânica? Até que, pouco a pouco, a clareza da produção faz emergir cada pequeno detalhe, cada ínfimo fragmento. O que parecia ter uma estabilidade comatosa surge agora em permanente mutação: uma bolha aqui, um estalo ali, um pigarro acolá. O metal frio da máquina tem afinal uma vida orgânica dentro dele: tecidos liquefeitos numa permanente troca de fluidos. As batidas são húmidas, aquáticas, fazendo-nos recear pela integridade dos nossos headphones. Nem totalmente mecanismo, nem totalmente organismo… Alcachofa é ciborgue.
O seu torpor e experimentalismo faz com que seja mais um disco para ouvir no sossego de casa do que na louca pista de dança (a não ser que se esteja sob o efeito de doses cavalares de tranquilizantes, o que acontece frequentemente no meio). A clareza e originalidade de cada detalhe sónico detona os nossos centros de prazer, um festim de descargas de endorfinas.
Se grande parte do disco se passa nesta deleitosa monotonia, alguns temas são inesperadamente melódicos e memoráveis. É o que acontece no icónico tema de abertura, “Easy Lee”, onde uma voz encharcada em vocoder e ketamina arrasta-se no êxtase de nada sentir. “Waiorinao” é a carta fora do baralho, dominada por um sample de guitarra tão quente e naturalista (e divertido e groovy) que parece que alguém mudou o disco sem repararmos. Mas nada supera a sublime “Dexter”. Depois de dois minutos que parecem não sair da cepa torta, eis que assomam as mais belas cordas sintetizadas da história da música electrónica: melancólicas, misteriosas, arrepiantes. Menu de degustação para o melómano gourmet.