Chega hoje ao fim a edição comemorativa dos dez anos do festival Bons Sons. Foram três dias – agora o quarto – de alguma da melhor música portuguesa, de sorrisos e calor tórrido no melhor recinto de um festival em Portugal. Cem Soldos voltou a receber milhares de pessoas como mais nenhum festival de música o faz, sem grandes engenhos, sem controlos, proibições e preços exagerados e com uma humildade e carinho gigantes.
O primeiro concerto da tarde começou às 14 horas e 10 minutos, no palco d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPAGDP). Diego Armés (ex-Feromona, Chibazqui) foi quem pisou o palco, tímido e de guitarra ao colo, cantando canções de amor e vida em tom de Palma (que irá tocar mais logo). Fora do ambiente rock dos seus projectos em banda, o cantautor lisboeta apresentou um punhado de canções a serem cantas e ouvidas em espaço pequeno e íntimo, como era o caso da Igreja de São Sebastião, em Cem Soldos – que nas últimas edições tem recebido o palco MPAGDP. Sem grandes aparatos e em jeito acústico, Armés seguiu pelos temas do seu Canções para Senhoras (2011), assim como alguns inéditos e versões de Feromona – sobre as quais brincou, dizendo que iria fazer versões de si próprio. “Conversa de Cama” e “Canção Para Nós”, mais precisamente, foram as canções da banda extinta que se fizeram ouvir em acústico, sendo também as canções mais celebradas pelo público.
Logo a seguir, no mesmo palco, chegava Flak. O seminal músico não deixou um milímetro da igreja vazio, com gente sentada em todos os cantinhos possíveis até mais não dar. Com ele trouxe uma pedaleira invejável através da qual fazia chorar a guitarra em jogos espirituais new age – ou não estivéssemos num local sagrado -, sobre teclados e batidas expansivas e sentimentais. Oceanos infinitos se construíam através dos pedais que domavam o som da sua Les Paul, numa experiência divina. Mas isto foi só a primeira música, já que na segunda (“De Azul em Azul”) a voz de Flak não fazia o melhor pela beleza sonora. Pelo resto do concerto Flak foi interpretando vários temas dos seus dois discos a solo, num concerto sofrível. Pelo fim, o público saltou com “Elevador da Glória”, dos Rádio Macau, com Flak quase em cima do altar guitarrando e a nostalgia a puxar rios de aplausos.
Palco Giacometti, o coreto. Se a voz de Flak nos fez torcer o nariz, as Golden Slumbers endireitaram-no. O porquê de serem um fenómeno ainda está por desvendar, já que o seu reportório não passa de canções fofinhas a soar igual a todo o folk americano que passa nas rádios (se calhar é isso), ainda que bem cantado e harmonizado – muito graças à boa banda de acompanhamento que trazem com elas. Ainda assim, as irmãs Falcão primam por uma adorável interacção com o público – particularmente audível em “Mourning Song/Clandestine”, no verso “there’s a hole in my soul, in my heart, from the start“, que todos cantaram fazendo de voz secundária das meninas. E no fundo interessa é isso.
Desbundixie foi “jazz anos 20, para dançar, estão à vontade, ia-vos dizer para tirarem a roupa mas estou a ver que já está aí muita gente nua”. O largo da igreja transformou-se por uma hora num clube de Nova Orleães dos roaring twenties, onde se dançou e desbundou sem medos nem limites, o público rendido ao septeto leiriense. No encore, a banda aproveitou a efeméride dos 10 anos de festival para cantar os parabéns ao mesmo, em conjunto com o público. Que forma incrível de abrir e fechar o palco Tarde ao Sol, ao som de dixieland e charleston de primeira, directamente da Lusitânia.
Com Lula Pena, acalmámos e parámos para pensar. A cantora lisboeta, nascida no ano de Abril, lembrou a vinda ao Bons Sons de há seis anos, com Troubadour na bagagem. Este ano veio com Archivo Pittoresco, que caracterizou como uma homenagem ao improviso e à falta de estrutura. Ao público, desejou boa viagem, avisando que sabia onde iria começar mas não onde iria acabar. Sobre os ritmos que palmeava na guitarra, Pena ia construindo lugares pelos quais nos transportava, em canções que tinham qualquer coisa de ancestral, de místico, de primordial e espiritual. Até as andorinhas cantavam e esvoaçavam pelo largo, acompanhando a guitarra nos momentos sem versos. E nós voávamos com ela pelo mundo especial de Lula Pena, num silêncio reflexivo e espirante, nunca parando pelo caminho. A Terra, ela também dançava. O seu movimento pouco a pouco nos fazia ver, ainda de dia, a branca e esfumada Lua, que espreitava o concerto, boquiaberta e também cantando.
A Lua já mais alta e brilhante, o Sol a dar os últimos raios de luz do dia, as Sopa de Pedra no palco Lopes-Graça. Com um início insuficientemente cheio para o palco que pisavam, as raparigas foram subindo a parada. “Adeus Ó Serra da Lapa” (Zeca Afonso) foi um dos temas que nos elevaram mais alto, com contratempos e dinâmicas mais desenvolvidas que as canções anteriores. A aurora arrepiante de “Cantiga Sem Maneiras” (Grupo de Acção Cultural), “Os Bravos” (balada açoreana popularizada por Zeca), “La Orilla Del Rio” e “Ró da Graça” foram outras dessas canções que nos fizeram deixar de sentir o frio da noite que chegava, algumas com o público marcando o ritmo, outras com ajuda de percussões amigas. Um bonito e diferente – para aquele palco – concerto que levamos connosco na bolsinha de memórias que ficam deste ano.
Ouvimos depois Les Crazy Coconuts, mas preferíamos não o ter feito. Possivelmente a banda mais fraca do festival, pisaram o palco Eira e tocaram váriaos temas num foleiro inglês, entre pop e rock – onde se incluiu uma versão de “These Boots Are Made For Made For Walking”, mais ou menos a entrar no punk com “Belong”, faixa de abertura do seu álbum de estreia, e sempre com o sapateado que ora é adereço ou parte essencial das canções. Voltámos para o palco Lopes-Graça, que fechava com Jorge Palma.
Palma entrou em palco de guitarra ao peito, ainda que não a ouvíssemos tocar. Chegámos a temer o playback mas ao fim de uma ou duas músicas lá começou a aparecer, antes do seu tocador fazer do piano o seu principal instrumento. Divertiu o público com o seu bom humor, feliz por finalmente tocar no Bons Sons e a esperar não ter um acidente como o do seu “companheiro Sérgio”, como lhe chamou. Já ao piano, quis dedicar uma canção aos bombeiros, mas rapidamente alertou que não seria a seguinte, “Dá-me Lume”. Depois do conhecido êxito, largou todos os outros de uma enfiada:”Frágil”, “Deixa-me Rir” e “Encosta-te a Mim”. Num concerto fluído e imparável, Jorge Palma provou estar em forma e continuar o mesmo pianista virtuoso de sempre, com o público constantemente a cantar as letras das suas eternas cantigas.
Logo de seguida, todos rumaram ao palco Eira, onde os D’Alva se preparavam para entrar em palco. Entrando ao som de “The Moment”, dos Tame Impala, o fresh prince de Lisboa não deixou que a festa parasse por um segundo. Sintetizadores e linhas de guitarra directamente da era do retrofuturismo, instrumentais que iam do rock duro (“Barulho”) ao chillwave com tambores e quase ao tropical house e ao funk com Alex D’Alva Teixeira a pular, a dançar e a correr entre uma ponta e outra do palco, que nem um Michael Jackson lusitano. Os strobes tornavam a banda – toda vestida de branco – num conjunto de seres de outro planeta, que acabavam de aterrar na aldeia ribatejana para fazer o público dar tudo na última noite do festival. O animal de palco fazia a poeira levantar com “3tempos”, “Aquele Momento”, “Mas Só Se Quiseres”, “L.L.S.”, “$egredo”, “Homologação” e outros temas de #batequebate (2014) e Não É Um Projecto. Ritmos e instrumentais alucinantes e complexos davam o mote à festa que não parecia ter fim, com uma mistura de referências à pop internacional a fazer a ponte entre as várias canções. Quase chegado o final, a banda parou para agradecer ao Bons Sons e aos artistas portugueses, depois de um momento em que cantaram os parabéns ao festival e ao irmão do músico Ben Monteiro, lembrando depois a pop portuguesa com “Sempre Que O Amor Me Quiser” (Lena D’Água), “Depois Não Digas” (Dina) e “Amor Combate” (Linda Martini). O incrível concerto terminou com “Frescobol” e seguimos para o palco Aguardela, onde os verdadeiros extraterrestres dos anos 80 já se preparavam para um dos shows da noite.
A fechar o festival, no palco Aguardela, eis chegada a hora dos reis do tecnobaile, os reis do turbobaile, Tochapestana! Calças de cabedal, óculos do futuro, gel no cabelo e camisas brilhantes eram pano de fundo para o romanticó-tecnó-metal do duo lisboeta. A postura irreverente de Gonçalo Tocha, para o bem ou para o mal, não deixava ninguém indiferente. As suas tiradas, como “todo o rockeiro é romântico e todo o romântico é rockeiro” ou “a junção do metal e do baile são a única verdade musical” ajudavam a criar a persona que parecia saída de um clube no Cais do Sodré dos anos 80 (mais em “Pratica a Tua Fé”, que apelava à visita aos bares desse sítio), de uma banda de casamentos (na balada em que Tocha tirou a camisa) ou de um concerto de arraial de Santo António (na devocional “Lisboa”). Nem demos pelos cinquenta minutos passar. A música não parou, com Tocha a continuar a já memorável noite com a sua incrível colecção de discos de vinil que lhe custaram menos de um euro.
A sétima edição do agora anual Bons Sons poderá não ter sido tão cheia e rica como a de há dois anos, a última edição do tempo bienal, mas saímos na mesma de Cem Soldos de coração e alma cheios, orgulhosos de muito do que cá é feito – e em especial da equipa que nos últimos dez anos tem feito o trabalho mais exemplar do país no que à divulgação e preservação de música feita em Portugal diz respeito, sem se deixar corromper (como alguns os grandes festivais de música). Um gigante obrigado e um caloroso até breve.
Fotos gentilmente cedidas por Carlos Manuel Martins